A riqueza da fecunda graça de Deus e a frutuosidade de uma fé obediente e perseverante (31)

6.9. Santificação

A justificação é um presente gratuito à parte das obras, mas a graciosa imputação de Deus de Sua justiça e o perdão das transgressões não podem ser reais, se não forem acompanhadas de santidade. – Russell P. Shedd.[1]

 

Toda fé adulta teve outrora seu período de infância; nem ela é tão perfeita em alguém que não haja mais qualquer necessidade de progresso. Portanto, aqueles que já eram crentes, passam a crer ainda mais, enquanto fazem progresso diariamente rumo ao alvo. E, assim, aqueles que já alcançaram os primórdios da fé, que então se esforcem continuamente para obter progresso. – João Calvino.[2]

 

Eu creio, Senhor, na divina promessa,

Vitórias já tive nas lutas aqui.

Contudo, é mui certo que a gente tropeça;

Por isso, Senhor, eu preciso de ti. [3]

 

Há uma relação indissolúvel entre fé, justificação e santificação. Por isso, os assuntos estão inter-relacionados e, de forma recorrente, os conectamos em nossa abordagem.

 

Não fomos salvos porque Deus se agradou de nossas supostas obras de justiça, do nosso justo modo de viver, antes, ele nos declarou justos, perdoando os nossos pecados, aplicando em nós a justiça de Cristo, nos capacitando a viver em novidade de vida, conforme o nosso novo status.

 

O preço de nossa justificação, gratuita para nós, custou o sangue de Cristo Jesus. A justificação, por envolver a regeneração,[4] é uma vocação incondicional à santificação conforme a vontade de Deus.[5]

 

A justificação nos livra da condenação do pecado. Deus chama pecadores, todavia, não deseja que continuem assim, antes, infunde neles a justiça de Cristo, dando-lhes um novo coração, mudando as inclinações de sua alma, habilitando-os a toda boa obra (Ef 2.8-10)[6].[7]

 

Por sua vez, deve ser acentuado que a justificação subjetiva marca o nosso novo itinerário de vida, já selado em nossa eleição eterna, rumo à glorificação com o Senhor, vivendo, conforme o propósito de Deus, para as boas obras, fruto da fé,[8] preparadas pelo próprio Deus para o seu povo (Ef 2.10).

 

A justificação é frutuosa. A graça justificadora jamais é estéril. A justificação implica necessariamente em santificação. A santificação pressupõe essencialmente a justificação. Não ousemos dividir o indivisível. A separação destas duas realidades concernentes à nossa salvação, propicia cair no equívoco da anomia, declarando que já não há mais lei. Desse modo, o caminho lógico a ser seguido é o de que não precisaríamos de santificação visto que, considerados salvos, poderíamos fazer o que bem entendêssemos. No entanto, a verdade bíblica é outra: somos declarados justos para vivermos em santidade.[9]

 

“Cristo a ninguém justifica, a quem ao mesmo tempo, não santifique”, declara Calvino[10] Todavia, a realidade do pecado ainda existe em nós. O justificado é simultaneamente justo e pecador (“Simul justus et peccator”) conforme expressão de Lutero (1483-1546).[11] Ele é declarado justo por Deus. Aqui não é o ponto final, antes, o início. As evidências de seu novo nascimento vão, gradativamente, se tornando mais claras por meio de sua obediência a Deus em santificação.

 

Neste processo de aperfeiçoamento há, fundamentalmente, a necessidade de nosso crescimento e amadurecimento. Deus não somente nos salva, mas, também, nos faz crescer em nossa caminhada.

 

A graça não é um ato condescendente de Deus para com os nossos pecados, um simples “alvará de soltura sobrenatural”[12]que nos autoriza ou, pelo menos, faz vistas grossas à nossa volta ao pecado anteriormente perdoado. Não.

 

Na educação divina (disciplina), vemos estampada a Sua graça que atua de forma pedagógica, instrutiva e corretiva: “Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, educando-nos (paideu/w) para  que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos no presente século, sensata, justa e piedosamente  (eu)sebw=j)” (Tt 2.11-12).

 

A santificação, portanto, é uma vocação imperativa e incondicional dos crentes. Aqueles a quem Deus elegeu, na eternidade, e chamou, no tempo, para si, os destina à uma vida de santidade. O chamado de Deus, portanto, não é virtual ou apenas teatral, antes, é real, tendo implicações óbvias no nosso pensar, sentir, decidir e agir. O propósito de Deus é reunir ao longo da história o seu povo a fim de constituir na eternidade, de forma definitiva a sua igreja, remida em Cristo, santificada em Cristo e que se assemelhe ao seu Senhor. “O maior desejo de Deus é ter santos no céu que sejam semelhantes ao seu próprio Filho”, conclui Shedd (1929-2016).[13]

 

São Paulo, 19 de março de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

*Este post faz parte de uma série. Acesse aqui a série completa


 

[1] Russell P. Shedd, A Justificação: A resposta de Deus para uma vida cristã autêntica, 2. ed. rev. São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 28. À frente, enfatiza: “A ausência de boas obras, então, é a prova concreta de que qualquer justificação alegada é imaginária” (Russell P. Shedd, A Justificação: A resposta de Deus para uma vida cristã autêntica, 2. ed. rev. São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 30).

[2]João Calvino, O evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 2.11), p. 95.

[3] Primeira estrofe do Hino “Necessidade”, nº 68 do Hinário Presbiteriano Novo Cântico. Hino composto pelo pastor metodista, Antônio de Campos Gonçalves (1899-1983) (letra) e Henriqueta Rosa Fernandes Braga (1909-1983) (música).

[4] “A regeneração é inseparável de seus efeitos, e um destes efeitos é a fé” (John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 119).

[5]“É certamente verdade que somos justificados em Cristo tão somente pela misericórdia divina, mas é igualmente verdade e correto que todos quantos são justificados são chamados pelo Senhor para que vivam uma vida digna de sua vocação. Portanto, que os crentes aprendam abraçá-lo, não somente para a justificação, mas também para a santificação, assim como ele se nos deu para ambos os propósitos, para que não venham a mutilá-lo com uma fé igualmente mutilada” (João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.13), p. 274). Ver também: João Calvino, Efésios, (Ef 2.10), p. 63.

[6]8Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; 9 não de obras, para que ninguém se glorie. 10 Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.8-10).

[7] “A justificação é unicamente pela fé. A santificação não é unicamente pela fé. A totalidade da vida cristã é uma vida de fé, porém na santificação temos que agir, e desenvolver, despir-nos e vestir-nos; como o apóstolo nos diz em todos esses pormenores que nos oferece aqui. (Ef 4)” (D.M. Lloyd-Jones, As Trevas e a Luz, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1995, p. 130).

[8] Vejam-se: Catecismo de Heidelberg, p. 86; Confissão Belga, Art. 24; Segunda Confissão Helvética, XVI.2; Confissão de Westminster, XVI.2.

[9]“…. Nunca se deve abrir uma lacuna entre a justificação e a santificação. (…) Você não pode, você não deve tentar dividir Cristo. É falsa a doutrina que diz que você pode ser justificado sem ser santificado. É impossível; você é ‘santo’ antes de ser ‘fiel’. Você foi separado. É por isso que você crê. Estas coisas estão entrelaçadas indissoluvelmente. Não permita Deus que as separemos ou que as dividamos, jamais!” (D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 33). “Aqueles que são justificados, também são sempre santificados; aqueles que são santificados sempre foram justificados. Deus uniu essas duas realidades espirituais, e elas não podem ser separadas uma da outra” (J.C. Ryle, Santidade, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 1987, p. 53). À frente: “Todas as pessoas justificadas são santificadas, e todas as pessoas santificadas foram justificadas. Aquilo que Deus ajuntou, portanto, que o homem não ouse separar” (p. 74). “A justiça imputada para justificação e a justiça inerente para a santificação devem estar inseparavelmente unidas. A santidade, de fato, não é a causa de nossa santificação, mas é acessória” (Thomas Watson, A Fé Cristã, estudos baseados no breve catecismo de Westminster, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 266). “A alegação de que a justificação pode ser genuína sem a confirmação da santificação é um perigoso engano” (Russell P. Shedd, A Justificação: A resposta de Deus para uma vida cristã autêntica, 2. ed. rev. São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 47).

[10] João Calvino, As Institutas, III.16.1.

[11] Vejam-se: G.C. Berkouwer, Faith and Sanctification, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1952, p. 71ss.; R.C. Sproul, A natureza forense da justificação: In: John F. MacArthur, Jr., et. al., A Marca da Vitalidade Espiritual a Igreja: Justificação pela Fé Somente, São Paulo: Editora Cultura Cristã, (2000), p. 34.

[12]Devo esta expressão a MacArthur (John MacArthur, O Evangelho Segundo os Apóstolos, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2011, p. 70).

[13]Russell P. Shedd, “Alegrai-vos no Senhor”: uma exposição de Filipenses, São Paulo: Vida Nova, © 1984 (Reimpressão: 1993), p. 19.

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