A Pessoa e Obra do Espírito Santo (88)

                      b) Devemos seguir a justiça de Deus

Pode parecer estranho o que vou dizer, contudo estou convencido de que um desejo comum a todo ser humano é o de que haja justiça. Por mais pecadores que sejamos, desejamos, ainda que muitas vezes de modo equivocado e, na maioria das vezes, de modo tênue e confuso, a justiça.

          Esta afirmação geral merece diversas considerações. Apresento algumas. Sei que a intensidade deste desejo sofre enormes variações e, em muitas circunstâncias, ele é substituído por um desejo egoísta, ou apenas levado adiante por motivos bastante pragmáticos: a convicção de que o que é justo beneficia os nossos interesses. Como também, ele se manifesta de forma um tanto teatral: desejamos a justiça pública, todavia, somos injustos com nossos familiares, ou com aqueles que, mais próximos de nós, dependem de nosso cuidado e manutenção. Fazemos discursos sobre a justiça pública, contudo, a nossa prática está distante no que se refere à justiça moral e social.

          Outra consideração importante se relaciona ao conceito de justiça. Podem variar bastante as interpretações abstratas e, especialmente, as concretas. Daí as discussões nos tribunais a respeito das questões de direito. Os oponentes, em geral, acham justas as suas reivindicações e, por elas, lutam dentro dos trâmites considerados legais.

          Biblicamente, aprendemos que não devemos confundir justiça com o nosso aparente bem-estar e o que consideramos felicidade. O desejo de justiça deve ser intenso pelo significado da justiça em si mesma.

          O justo nem sempre parecerá agradável a nós. No entanto, quão difícil é tentar analisar objetivamente esta questão quando ela envolve os nossos interesses, especialmente, aqueles que são mais caros dentro de nossa escala de valores.

          “O significado de cada palavra está condicionado pela experiência da pessoa que a usa”, interpreta Barclay (1907-1978).[1] É fato: para os judeus, no tempo de Jesus, por exemplo, uma importante questão de justiça era a expulsão dos dominadores romanos. Desta forma, eles associavam a vinda do Messias com a justa libertação, por isso a identificação natural do Messias como sendo um libertador político.

          Jesus Cristo, neste contexto, nos ensina a importância do desejo intenso, não por qualquer coisa, mas pela justiça.

          A fome e a sede não são virtudes em si mesmas, mas se tornam aqui pelo seu objeto: a justiça. Deve ser dito, também, que a fome e a sede aqui expostas, não satisfeitas, só aumentarão. Não será algo passageiro, como, por exemplo, o desejo que podemos sentir por conhecer Maceió após uma reportagem falando de suas belas praias, ou como provar determinado prato depois de uma propaganda que apresentou uma iguaria suculenta aos nossos olhos. Nestes e em outros casos tão comuns à nossa experiência, podemos até comentar sobre o desejo que sentimos, mas, que passou ou que esperamos um dia, quem sabe, ter a oportunidade de fazer aquela receita, ir àquele restaurante, ou visitar aquela cidade.

                    No entanto, a desesperança do homem sem Deus que busca a satisfação de suas necessidades fora dele, acumula cada vez mais dor e ressentimento pelo desespero de sua situação, só aumenta. Ele não encontrou nem poderá encontrar por si mesmo o que sacie as suas carências espirituais mais prementes.

          O filho pródigo, quando sentiu fome, tentou se fartar com as alfarrobas dos porcos, contudo, quando ficou mesmo faminto, “morrendo de fome”, quis e de fato voltou para casa, para o seu pai (Lc 15.16-20).[2]

          Deve ser dito que, numa primeira instância significativa, esta bem-aventurança expressa o desejo intenso por ser reconciliado com Deus – ficar em paz com Deus. O Senhor Jesus, tratando destas questões, conforme mostraremos, associa as necessidades vitais de nosso corpo – alimento e água ‒ com a necessidade essencial de nossa alma em relação a Deus: justiça. “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos” (Mt 5.6).

          O apóstolo Paulo, por sua vez, analisa outra vertente da questão, consequente da anterior ‒ já que só é possível tratar desta a partir daquela ‒ nos diz que a graça de Deus é pedagógica, ensina-nos a viver no mundo presente de forma justa: 11 Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, 12educando-nos para que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos, no presente século, sensata, justa (dikai/wj = reta) e piedosamente” (Tt 2.11.12).

          Os critérios de justiça variam de povo para povo e até mesmo conforme os nossos interesses terrenos. A nossa mente tem a capacidade de usar um recurso chamado de “mecanismo de defesa”, que consiste na racionalização que nada mais é do que a tentativa de justificar as nossas crenças já dogmatizadas pelos nossos desejos. Por isso, é que a justiça que devemos seguir não é a de homens, conforme os seus pecados e/ou nossos interesses, mas a justiça de Deus.

          É neste sentido que Jesus nos adverte quanto à “justiça” dos escribas e fariseus, vaidosa, fruto de seus padrões acomodatícios aos seus interesses pecaminosos. “Se a vossa justiça (dikaiosu/nh)não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus” (Mt 5.20).[3]

          A justiça desses homens visava a tão somente satisfazer os seus próprios desejos de serem vistos e admirados como homens “piedosos” e geniais “intérpretes da lei”. Jesus novamente nos adverte quanto aos nossos reais propósitos: “Guardai-vos de exercer a vossa justiça (dikaiosu/nh) diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles; doutra sorte não tereis galardão junto de vosso Pai celeste” (Mt 6.1-2).

          A Palavra nos ensina que andar em justiça é uma forma preventiva de nos guardar da corrupção do pecado: “A justiça (hq’d’c..) (tsedaqah) guarda ao que anda em integridade, mas a malícia subverte ao pecador” (Pv 13.6).

          Quando seguimos a justiça de Deus, estamos amparados nos seus ensinamentos que são perfeitos; não há contradição neles. A Palavra de Deus, dentro dos limites próprios do revelado, é uma expressão perfeita do que Deus é e do que Ele deseja de nós. Desse modo, podemos estar seguros em seus caminhos.

          Certamente, uma das formas de nos preservar no caminho da justiça é  educar-nos a contentar-nos com o que temos, sem deixar-nos fascinar pelo caminho aparentemente fácil e promissor da injustiça: “Melhor é o pouco, havendo justiça (hq’d’c..) (tsedaqah), do que grandes rendimentos com injustiça” (Pv 16.8).

          Por isso, a Bíblia nos ensina enfaticamente que a justiça que devemos seguir é a de Deus, conforme é-nos ensinada por Jesus Cristo. “A justiça requerida por Jesus é nada menos que a completa conformidade com a santa lei de Deus”, enfatiza Hendriksen.[4]

          Lembremo-nos de que o Senhor conhece os nossos corações, sabe de nossas intenções e motivações (Jo 2.25). E é Ele mesmo quem nos julgará com justiça.

          Contudo, quem de nós é suficiente para estas coisas? Precisamos, muitas vezes com dificuldade, discernir o que é justo e, num passo seguinte, agir conforme esta compreensão que deve ser modelada pela Palavra.   O salmista ora neste sentido: “Guia-me pelas veredas da justiça (qd,c,) (tsedeq) por amor do seu nome” (Sl 23.3).

          Em outro texto, o salmista pede a Deus discernimento para que possa viver em conformidade com os testemunhos de Deus: “Eterna é a justiça (qd,c,) (tsedeq) dos teus testemunhos; dá-me a inteligência (!yBi) (biyn)[5] deles, e viverei” (Sl 119.144).

          Com discernimento, Salomão pede a Deus o senso de justiça: “Concede ao rei, ó Deus, os teus juízos e a tua justiça (hq’d’c..) (tsedaqah), ao filho do rei” (Sl 72.1).

          Posteriormente, Salomão pode dizer: “Ando pelo caminho da justiça (hq’d’c..) (tsedaqah), no meio das veredas do juízo” (Pv 8.20).[6]

          No Novo Testamento, Paulo insiste com o jovem Timóteo neste ponto: Segue (diw/kw) a justiça (dikaiosu/nh), a piedade, a fé, o amor, a constância, a mansidão” (1Tm 6.11). “Foge (feu/gw),[7] outrossim, das paixões da mocidade. Segue (diw/kw) a justiça (dikaiosu/nh), a fé, o amor e a paz com os que de coração puro, invocam o Senhor” (2Tm 2.22).

          O verbo seguir (diw/kw)[8] é extremamente forte. Indica no texto que devemos buscar intensamente a justiça, persegui-la constante e perseverantemente. Significa, então, que isto não é fácil. Buscar a prática da justiça quando ainda temos inclinação para o pecado é extremamente difícil. Daí a ênfase: buscar, empenhar-se, perseguir intensamente a prática da justiça de Deus em todas as nossas relações, em todos os nossos atos.

Maringá, 14 de janeiro de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado,Buenos Aires: La Aurora, 1973, (Mateo I), v. 1, (Mt 5.6), p. 107.

[2] Devo esta aplicação a Lloyd-Jones, que a cita de John N. Darby (David M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: Editora Fiel, 1984, p. 73).

[3] É bastante iluminadora a análise de Hendriksen a respeito da justiça dos fariseus. Veja-se: William Hendriksen, Mateus,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, v. 1, (Mt 5.20), p. 411-413

[4]William Hendriksen, Mateus,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, v. 1, (Mt 5.20), p. 411. “O que o judeu descobriu, ou melhor, o que ele sabia ser-lhe revelado providencialmente, era que é apenas em conformidade com a justiça de Deus que o homem pode experimentar a mais alta felicidade para qual sua natureza foi criada. Estar em conformidade com a justiça de Deus é estar em ordem consigo mesmo, e assim descobrir harmonia e paz” (A.H. Leitch, Justiça: In: M.C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008., v. 3, p. 808-809).

[5]A palavra tem também o sentido de discernimento, prudência, sabedoria e percepção.

[6] “Quem se desvia do caminho da justiça, há de vagar na maior miséria pelas sendas da iniquidade” (Agostinho, Comentário aos Salmos,São Paulo: Paulinas, 1997, (Patrística, 9/1), v. 1, (Sl 2.12), p. 29).

[7] O verbo, no presente imperativo, indica uma ação que deve se tornar um hábito de vida.

[8]O verbo está no presente imperativo ativo. Associando-se o fugir ao seguir, temos um comportamento constante e complementar que deve fazer parte da conduta cristã. Diw/kw é utilizado sistematicamente para aqueles que perseguiam a Jesus, os discípulos e a Igreja (Mt 5.10-12; Lc 21.12; Jo 5.16; 15.20). Lucas emprega este mesmo verbo para descrever a perseguição que Paulo efetuou contra a Igreja (At 22.4; 26.11; 1Co 15.9; Gl 1.13,23; Fp 3.6), sendo também a palavra utilizada por Jesus Cristo quando pergunta a Saulo do porquê de sua perseguição (At 9.4-5/At 22.7-8/At 26.14-15). Paulo diz que prosseguia para o alvo (Fp 3.12,14). O escritor de Hebreus diz que devemos perseguir a paz e a santificação (Hb 12.14). Pedro ensina o mesmo a respeito da paz (1Pe 3.11).

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