A Pessoa e Obra do Espírito Santo (67)
J. Justo e reto juiz (Continuação)
Deísmo, Panteísmo e Panenteísmo
O salmista parte de uma certeza: o mundo não está entregue ao acaso ou ao governo dos homens. Como vimos, Deus compartilha com o homem o seu poder, contudo, não abriu mão de sua soberania. Aqui não há espaço para nenhum tipo de Deísmo (Deus distante da Criação), Panteísmo (Deus se confunde com a matéria), Teísmo Finito(Deus é bom, mas, limitado pelo mal) ou Panenteísmo[1](pa=n-e)n-Qeo/j) (“Tudo está em Deus”).[2]
Como criador, preservador e proprietário de todas as coisas, Ele governa e julga com justiça: “Justo (qyDIc;) (tsadiyq) é o Senhor em todos os seus caminhos, benigno em todas as suas obras” (Sl 145.17).
O salmista, confiante na justiça de Deus, ora: “Julga-me, SENHOR, Deus meu, segundo a tua justiça (qd,c) (tsedeq); não permitas que se regozijem contra mim” (Sl 35.24).
Os servos de Deus em todos os momentos têm a certeza de quem é o seu Senhor e, portanto, que Ele “Justo (qyDIc;) (tsadiyq) és, SENHOR, e retos, os teus juízos” (Sl 119.137). “4Porque sustentas o meu direito e a minha causa; no trono te assentas e julgas (jp;v’) ((shaphat) retamente (qd,c) (tsedeq). (…) 8Ele mesmo julga o mundo com justiça (qd,c) (tsedeq); administra os povos com retidão (rIv’yme.) (meshar)[3]” (Sl 9.4,8).
A certeza de que há leis e de que somos governados por meio delas, não basta para nos fazer sentir confiantes em todo tempo.
Muitas vezes as nossas causas nos parecem tão pequenas – perdidas entre tantas e tantas outras de maior proporção ou de maior importância conforme o grau de interesse de quem compete julgar -, que nem alimentamos grande esperança, tendendo a assumir uma inércia lastimosa.
Nesses casos cultivamos uma espécie de ceticismo resultante da convicção, sempre ilustrada, de que não há espaço para a justiça. A generalização indevida é pródiga na fomentação do ceticismo que, por sua vez, só retroalimenta a nossa insatisfação e a satisfação de a disseminarmos de forma corrosiva entre os crentes.
O salmista, no entanto, afirma que o Deus que rege as nações e julga o mundo com justiça, também sustenta o seu direito e a sua causa (Sl 9.4). Ou seja: Deus cuida pessoalmente de nós e de nossas causas; nada fica esquecido ou perdido em meio aos “papeis” e “processo”. Por isso, o salmista dizer:“Sei que o SENHOR manterá a causa (!yD) (diyn) do oprimido (ynI[‘)(`aniy) e o direito (jP’v.mi) (mishpat) do necessitado (!Ayb.a) (‘ebyon)” (Sl 140.12). Em outro salmo, o escritor exulta: “Reina o SENHOR. Ele firmou o mundo para que não se abale e julga (!yD) (diyn) os povos com equidade” (Sl 96.10).
Boice (1938-2000) comenta:
Há dois aspectos sobre os quais esta estância fala do reinado de Deus. 1. Deus governa toda a história atualmente. Às vezes é difícil apreciar este fato porque há muita injustiça e violência no mundo. Não obstante, Deus de fato governa no sentido de que, tanto põe em cheque o mal, como também intervém de tempo em tempo para julgá-la na história. (…) 2. Deus vai julgar as nações do mundo com perfeita justiça no futuro.[4]
Juízo universal
Um recurso de retórica muito comum, ainda que indesejável, é incluir o “nós” onde só se tem certeza do inseguro “eu” que busca em um discurso abrangente a sustentabilidade qualificativa que não tem em si
Desse modo, falamos em nome de pessoas que não nos autorizaram a representá-las em nossa fala e, também, não temos autoridade para isso, exceto a concedida pelo nosso despropositado e pretensioso eu.
Outra forma ideológica discursiva é a generalização indevida como estratégia para conferir força ao argumento.
Assim, falamos: “Hoje ninguém mais pensa dessa forma”; “Todos sabemos”; “Pesquisas têm demonstrado”; “A ciência já provou”, esse ou aquele pensamento “está totalmente ultrapassado”, etc.
Saindo dessas construções ideológicas, podemos retornar às Escrituras.
Senhor que governa
As Escrituras declaram com insistência que Deus é Rei. O fato é que como Deus é o Senhor Criador de todas as coisas (Rei), também governa sobre todo o universo (Reina). Não há aqui generalizações, presunção ou hipérboles.
Deste modo, a manifestação do seu juízo será sobre todos os povos. Ninguém será julgado simplesmente pelos padrões da sua cultura. Aqui não há nenhum tipo de relativismo[5] e subjetivismo.[6] A Lei de Deus permanece extensiva e permanentemente: sobre todos os povos e para sempre.
Boice (1938-2000) resume:
Quando perguntamos o que é certo, o que é moral, respondemos à questão não apelando para algum padrão moral independente, como se pudesse haver um padrão para qualquer coisa separado de Deus, e sim apelando para a vontade e natureza do próprio Deus. O certo é o que Deus é e revela para nós.[7]
“O Senhor (hwhy) (Yehovah)julga os povos” (Sl 7.8). Deus julga a todos os povos porque, na realidade, todo o universo, toda a criação, visível e invisível, lhe pertencem e estão sob a sua preservação, cuidado e senhorio. Deus não é indiferente à sua criação. Deus não está ocioso nem inerte.[8]
O juízo de Deus é universal. Ele é independente. O seu juízo não é uma pretensão megalomaníaca, antes, é a manifestação santa e justa de seu governo. Ele é o Senhor. Por isso tem autoridade e autonomia para fazê-lo.
Não há nada no mundo que possa presumir autonomia ou independência em relação a Deus. Tudo pertence a Ele. Deus é o legítimo proprietário de todas as coisas.
Contudo, em alguns momentos, a sucessão dos eventos históricos pode nos deixar perplexos, como aconteceu com o profeta Habacuque (Hc 1 e 2).
Entretanto, a mão poderosa de Deus rege todos os acontecimentos. Deus dirige a história fazendo com que todas as coisas contribuam para o bem do seu povo, da sua Igreja (Rm 8.28). O propósito de Deus é que cada vez mais nos assemelhemos a Cristo.
Lloyd-Jones (1899-1981) interpreta:
Toda nação da terra está sob a mão divina, porque não há poder neste mundo que, em última instância, não seja por Ele controlado. (…) Deus é o Senhor da história. (…) Ele começou o processo histórico, controla-o, e por-lhe-á um fim. Jamais devemos perder de vista este fato decisivo.[9]
O salmista inspirado por Deus afirma que Deus “administra (julga) os povos com retidão” (Sl 9.8).
Bavinck escreve de modo esclarecedor e confortador:
A doutrina da providência não é um sistema filosófico, mas uma confissão de fé, a confissão de que, apesar das aparências, nem Satanás, nem o ser humano, nem qualquer outra criatura, mas somente Deus – mediante seu poder Todo-Poderoso e presente em toda parte – preserva e governa todas as coisas. Essa confissão pode nos salvar tanto de um otimismo superficial que nega os mistérios da vida quanto de um pessimismo arrogante que se desespera deste mundo e do destino humano.[10]
Ele tem o controle de todas as coisas. É o Senhor não só de Israel, mas, também, de todos os povos. E como não poderia deixar de ser, o controle universal de Deus é com retidão. Isso indica que um dos aspectos de sua soberania ligado diretamente a nós, é o seu soberano e bondoso governo sobre a história.
O juízo de Deus está sobre todas as esferas, tanto na forma de amplitude (extensividade) como de intensidade (profundidade). (Sl 130).
“Como grande Rei, o Senhor serve como o tribunal de apelação em questões civis para todos os oprimidos, isto, não somente para os oprimidos de Israel”, interpreta Bosma.[11]
Nada lhe é estranho ou indiferente. O sofrimento de seu povo não lhe passa desapercebido ou alheio ao seu santo controle.
Nessa certeza o salmista se conforta: “Pois o necessitado não será para sempre esquecido, e a esperança dos aflitos não se há de frustrar perpetuamente” (Sl 9.18/Sl 10.12-18).
No alegre e agradecido cântico de Ana, há a declaração do governo de Deus sobre “as extremidades da Terra”: “Os que contendem com o SENHOR são quebrantados; dos céus troveja contra eles. O SENHOR julga (!yD) (diyn) as extremidades da terra, dá força ao seu rei e exalta o poder do seu ungido” (1Sm 2.10).
Maringá, 06 de dezembro de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Termo criado pelo filósofo alemão, discípulo de Kant, Friedrich Krause (1781-1832) em 1828. Com esse termo ele desejava identificar o seu sistema distinguindo-o do panteísmo e do teísmo. Tudo estaria em Deus mas, Deus não se limitaria ao mundo.
[2]Veja-se: W. Gary Crampton; Richard E. Bacon, Em Direção a uma Cosmovisão Cristã, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 93-106; Cosmovisão: In: Norman Geisler, Enciclopédia de apologética, São Paulo: Vida, 2002, (2. impressão), p. 188-189. Horton sugere que o panteísmo/panenteísmo tem sido o rival mais dominante da fé bíblica desde a Antiguidade (Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 41).
[3]A palavra retidão significa, entre outras coisas: Sinceridade (1Cr 29.17); Equidade (Sl 17.2; 96.10; 98.9; 99.4; Pv 1.3; 2.9); Retamente (Sl 75.2); Coisas retas (Pv 8.6; 23.16); Suavidade (Pv 23.31; Ct 7.9); Caminho plano (Metaforicamente) (Is 26.7); Reto (Is 33.15); Direito (Is 45.19); Concórdia (Dn 11.6).
[4] James M. Boice, Psalms 42-106, Grand Rapids, Michigan: Baker Books, 1996, v. 2, p. 786-787.
[5]Para o relativismo ético ou convencionalismo, os conceitos considerados verdadeiros são produtos dos valores de uma época, de uma cultura, de um povo. Assim, toda verdade é relativa às crenças de uma sociedade, época, grupo ou cultura. Deste modo, não existe um código moral universalmente válido, antes, há uma infinidade de códigos com reivindicações semelhantes. A questão, portanto, não é quanto à existência de um código moral, antes, a sua validade universal. Como se pode perceber, o relativismo sempre é contraditório. Como firmar padrões sem premissas que os fundamentem? (Para uma descrição dos tipos de relativismos, vejam-se: David B. Wong, Relativismo Moral: In: Monique Canto-Sperber, org. Dicionário de Ética e Filosofia Moral, São Leopoldo, RS.: Editora Unisinos, 2003, v. 2, p. 490-496; J.P. Moreland; William L. Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristã, São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 498ss. Uma visão erudita e bem humorada do relativismo cultural mostrando a sua realidade, limites e incompreensões de seus acusadores, encontramos em: Clifford Geertz, Nova Luz Sobre a Antropologia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 47-67. Para uma avaliação cristã, vejam-se os artigos: Relativismo, Relativismo Cultural e Relativismo Ético. In: Carl Henry, org., Dicionário de Ética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 507-514; Verdade, natureza da: Norman Geisler, Enciclopédia de Apologética: respostas aos críticos da fé cristã, São Paulo: Editora Vida, 2002, p. 864-867 (especialmente); John Piper, Pense – A Vida da Mente e o Amor de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 133-166.
[6] Para o subjetivismo, a validade da verdade está limitada ao sujeito que conhece e julga. Desta forma, não podemos falar de uma realidade idêntica para todo o ser humano. Toda certeza é pessoal, visto que toda a verdade é subjetiva.
[7] James M. Boice, Fundamentos da Fé Cristã: Um manual de teologia ao alcance de todos, Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2011, p. 112.
[8] “Deus nunca está ocioso. Ele nunca está passivamente presente, como mero espectador” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 617). Veja-se: Santo Agostinho, Comentário ao Gênesis, São Paulo: Paulus, 2005 (Coleção Patrística; 21), IV.12, p. 133.
[9] D. Martyn Lloyd Jones, Do temor à fé, Miami: Editora Vida, 1985, p. 21.
[10] Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 631
[11] Carl J. Bosma, Os Salmos: Porta de Entrada para as Nações. Aspectos da base teológica e prática missionária no Livro dos Salmos, São Paulo: Fôlego, 2009, p. 35.