A Pessoa e Obra do Espírito Santo (488)

3.4.2.1. Servir aos senhores com sinceridade  (Continuação)

O cristão, justamente por ser cristão, deve ser um trabalhador exemplar.[1] É curioso que Paulo sempre desafiava os crentes que conviveram com ele a considerarem o seu testemunho, o seu passado em sua companhia.

Considerando que ele tinha a Cristo como modelo supremo, procurava de forma coerente se tornar o modelo (tu/poj) daquilo que ele mesmo ensinava (2Ts 3.9/1Co 10.6; Fp 3.17). Sustentava que isso era uma característica indispensável aos mestres (1Tm 4.12; Tt 2.7). Do mesmo modo entendia Pedro (1Pe 5.3).

Certamente como reflexo desses ensinamentos, encontramos no segundo século, o Didaquê (c. 120 A.D.), capítulo XII,[2] instruindo:

1. Acolha todo aquele que vier em nome do Senhor. Depois, examine para conhecê-lo, pois você tem discernimento para distinguir a esquerda da direita.
2. Se o hóspede estiver de passagem, dê-lhe ajuda no que puder. Entretanto, ele não deve permanecer com você mais que dois ou três dias, se necessário.
3. Se quiser se estabelecer e tiver uma profissão, então que trabalhe para se sustentar.
4. Porém, se ele não tiver profissão, proceda de acordo com a prudência, para que um cristão não viva ociosamente em seu meio.
5. Se ele não aceitar isso, trata-se de um comerciante de Cristo. Tenha cuidado com essa gente!.[3]

Retornando ao Novo Testamento, vemos Paulo instruindo àquele que no seu antigo modo de vida, furtava, agora, convertido ao Senhor, deve, em novidade de vida, se sustentar com o fruto de seu trabalho, tendo também uma preocupação social: “Aquele que furtava não furte mais; antes, trabalhe (kopia/w), fazendo com as próprias mãos[4] o que é bom, para que tenha com que acudir ao necessitado” (Ef 4.28/At 20.34; 28.10; Rm 12.13;[5] Fp 4.16).

            É emblemático que Paulo use neste texto (Ef 4.28) o verbo kopia/w ordenando ao convertido, que trabalhe árdua, intensa e exaustivamente para se manter e ainda ter como suprir as necessidades eventuais de seus irmãos.

            Vejo aqui um princípio pedagógico. É como se ele dissesse: aprenda na prática como é difícil obter licitamente o sustento. Faça isso com perseverança. Ainda mais: você que subtraiu de outros no passado o produto de seu trabalho, se esforce agora por ajudar os que necessitam.

            Paulo dá uma dimensão teológica ao trabalho, mostrando que todo e qualquer trabalho deve ser feito para a glória do Senhor (Cl 3.23).

            Timóteo deveria se esforçar por se apresentar a Deus como obreiro aprovado que manejava bem a Palavra da verdade: “Procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro (e)rgath/j) que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade” (2Tm 2.15).

            A prestação de contas de nosso trabalho deverá ser feita a Deus; é Ele com o Seu escrutínio perfeito e eterno Quem julgará as obras de nossas mãos, daí a recomendação do Apóstolo Paulo:

E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus. (…) Servos, obedecei em tudo aos vossos senhores segundo a carne, não servindo apenas sob vigilância, visando tão-só agradar homens, mas em singeleza de coração, temendo ao Senhor. Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o Senhor, e não para homens, cientes de que recebereis do Senhor a recompensa da herança. A Cristo, o Senhor, é que estais servindo; pois aquele que faz injustiça receberá em    troco a injustiça feita; e nisto não há acepção de pessoas.      Senhores, tratai aos servos com justiça e com equidade, certos de que também vós tendes Senhor no céu. (Cl 3.17,22-4.1).

            Portanto, não há desculpas para a fuga do trabalho, mesmo em nome de um motivo supostamente religioso (1Ts 4.9-12/Ef 4.28; 1Tm 5.11-13).[6]

            Barclay, resume bem o espírito cristão do trabalho, afirmando: “O trabalhador deve fazê-lo como se fosse para Cristo. Nós não trabalhamos pelo pagamento, nem por ambição, nem para satisfazer a um amo terreno. Trabalhamos de tal maneira que possamos tomar cada trabalho e oferecê-lo a Cristo”.[7] (Veja-se: 1Tm 6.1-2).

            Calvino comenta sobre dois aspectos que devem caracterizar o nosso trabalho em todos os aspectos:

Ainda que, quando os homens se devotam fielmente ao seu dever, não perdem seu trabalho, contudo seu sucesso depende inteiramente do favor divino. O que Paulo assevera concernente à eficácia do ensino se estende ainda mais: “que aquele que planta e aquele que rega nada são” [1Co 3.7], pois a similitude é extraída da experiência geral. A utilidade desta doutrina é dupla: Em primeiro lugar, tudo quanto eu tente fazer, ou, seja qual for o trabalho ao qual aplique minhas mãos, meu dever é desejar que Deus abençoe meu labor, para que ele não seja vão e infrutífero. Então, caso eu tenha obtido algo, meu segundo dever é atribuir a Deus o louvor; sem cuja bênção em vão os homens se levantem de manhã, se fatiguem o dia inteiro, descansem tarde, comam o pão da preocupação e inclusive bebam pouca água com tristeza.[8] (Destaques meus).

O nosso trabalho deve visar a glória de Deus.[9] Todo ele deve ser feito na presença de Deus. Isso nos concede a percepção de nosso privilégio e responsabilidade. Portanto, como implicação ética, devemos entender que jamais poderemos trabalhar com displicência e descuido. Tudo que fazemos é sob o senhorio de Deus.

            O empregado cristão reconhece que todas as vocações são de Deus e que, em última instância é a Deus a quem teremos de prestar contas. Desta forma, seja qual for o nosso trabalho, deve ser realizado para a glória de Deus: Ele é a quem estamos servindo. Esta perspectiva é decorrente da compreensão de que Deus é o Senhor de todas as coisas e, esta prática, só é possível pelo Espírito que nos “enche” gradativamente e, nos faz cumprir a sua vontade.

3.4.2.2. Tratar os “empregados” com dignidade (Ef 6.9)

Os patrões e chefes cristãos que vivem no Espírito, por certo, não aproveitam da sua autoridade para pressionar os que estão sob as suas ordens, valendo-se do fato de que há mais procura do que oferta de emprego, a fim de ameaçá-los, menosprezá-los ou tratá-los indignamente como se fossem apenas uma ferramenta humana descartável (Ver: Cl 4.1).

            A justiça divina (Is 64.6) deve ser a tônica da relação patrão-empregado e empregado-patrão. A base para este relacionamento, é a certeza de que, quer sejamos empregados, quer sejamos patrões, todos temos o mesmo Senhor no céu (Ef 6.9; Cl 4.1). A possibilidade real desta prática está no fato de sermos guiados e capacitados pelo Espírito Santo.

            Calvino conclui o princípio para os servos e senhores dizendo: “Em suma, cada um, conforme a sua vocação e a sua posição, verifique o que deve a seu próximo, e cumpra o seu dever”.[10]

Maringá, 25 de maio de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa



[1] Veja-se: William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1973, v. 11, (2Ts 3.6-18), p. 226-227. Da mesma forma, com uma visão mais crítica, William Hendriksen, 1 e 2 Tessalonicenses, São Paulo: Cultura Cristã, 1998, (2Ts 3.10), p. 299-300 e I. Howard Marshall, I e II Tessalonicenses, São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão,1984, (2Ts 3.10), p. 259-260.

[2]Documento anônimo amplamente aceito, devido a sua pretensão de ter sido redigido pelos apóstolos, daí o seu nome completo: Didaquê: Ensino do Senhor Através dos Doze Apóstolos.

[3]Texto completo em http://www.monergismo.com/textos/credos/didaque.htm (Acessado em 19.03.12). Para uma tradução diferente, veja-se:Didaquê, XII: In:O Didaquê,J.G. Salvador, ed. São Paulo: Imprensa Metodista, 1957, p. 74.

[4] Literalmente: “trabalhe arduamente com as próprias mãos” .

[5]“Compartilhai as necessidades dos santos; praticai a hospitalidade” (Rm 12.13).

[6] Para uma visão mais completa sobre o conceito de trabalho e como a Reforma foi fundamental para restaurar uma compreensão bíblica, veja-se, entre outros textos meus: Introdução à Cosmovisão Reformada, Maringá, 2012.

[7]William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado,Buenos Aires:  La Aurora, 1973, v. 11, p. 176.

[8]John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan:  Baker Book House, 1996 (Reprinted), v. 1/2, (Gn 30.29), p. 151-152.

[9] “O trabalho deve ser feito não apenas como se fosse para Cristo, mas também com a consciência de que estamos realmente agradando a Deus em conquistar seu mundo para o serviço da humanidade” (Oliver Barclay,  Mente Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 93).

[10]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 1, (III.68), p. 207.

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