A Pessoa e Obra do Espírito Santo (482)

3.4.2. Na vida familiar (Continuação)

Pois bem, como uma das evidências da importância que Paulo confere à família, destacamos que em uma de suas analogias, refere-se à Igreja como a “família de Deus” (Ef 2.19), composta por judeus e gentios.

            A família além de ser a primeira instituição na sociedade,[1] é, também, o fundamento de qualquer sociedade; quando ela se destroça, a sociedade, sem dúvida alguma, herdará suas consequências.

            É na família onde se agregam valores e sentimentos. A família como instrumento de socialização primária,[2] é de onde partem os valores mais consistentes do indivíduo que, para o bem ou para o mal, são os mais difíceis de serem desintegrados,[3] os quais o acompanharão para sempre, quer tenha consciência disso, quer não.

            Se formos examinar com algum vagar, poderemos constatar que a grande maioria dos delinquentes provém de lares desestabilizados ou, em processo de destruição.

            Hendriksen (1900-1982), acertadamente diz: “Nenhuma instituição sobre a face da terra é tão sagrada quanto a família. Nenhuma é tão básica. Segundo a atmosfera moral e religiosa da família, assim será na igreja, na nação e na sociedade em geral”.[4]

            É a partir da família que encontramos os princípios que vão constituir a nossa visão de mundo, criando, orientando e estimulando os nossos valores e, consequentemente a nossa atuação na sociedade, como reflexo de nossa relação com Deus e conosco mesmo.

            Sem uma forte base moral, a família não tem condições de perceber e, caso perceba, de enfrentar os perigos de uma sociedade pervertida e desagregadora que minam os seus fundamentos morais e espirituais.[5]

            A integralidade do homem como ser criado por Deus encontra seu fundamento e expressão mais expressiva na família. “O homem, comenta Kline,  é um ser total, integrado. A família poderá ser considerada boa ou má à medida que ela se presta à realização do ser humano como uma totalidade. O ser total do homem encontra o significado e a realização de sua própria existência em seu mais alto grau da comunhão com outros”.[6]

            Partamos do princípio: Os seres criados por Deus (peixes, aves, animais domésticos, animais selváticos, etc.) o foram conforme as suas respectivas espécies. Por isso, toda a Criação revela de algum modo, aspectos da glória de Deus, vestígios de Seu Autor. O homem, diferentemente, teve o seu modelo no próprio Deus Criador (Gn 1.26; Ef 4.24), sendo distinto assim, de todo o resto da Criação, partilhando com Deus de uma identidade desconhecida por todas as outras criaturas, visto que somente o homem foi criado “à imagem e semelhança de Deus”.

            Somente o homem pode partilhar de um relacionamento pessoal, voluntário e consciente com Deus. “Embora todas as criaturas exibam vestígios de Deus, somente o ser humano é a imagem de Deus. Ele inteiro é essa imagem, alma e corpo, em suas faculdades e capacidades, em todas as condições e relações. O ser humano é a imagem de Deus porque, e na medida em que, é verdadeiramente humano; e é verdadeiro e essencialmente humano porque, e na medida em que, é a imagem de Deus”.[7]

            No homem, como reflexo de Seu Criador, Deus deve ser visto, quer em Sua natureza que expressa Deus, quer em seus atos, visto que ele está comprometido com os interesses de Deus. O seu propósito é glorificar a Deus, a quem ama e obedece.[8]

            Quando se trata de encontrar uma companheira para o homem com quem ele possa se relacionar de forma pessoal – já que não se encontra em todo o resto da criação uma à altura – a solução foi uma nova criação. Não mais a partir do pó da terra, mas tirada da costela de Adão, e transformada por Deus em uma auxiliadora idônea. Adão se completará nela,[9] passando a haver uma “fusão interpessoal”, “unidade essencial”, constituindo-se os dois uma só carne (Gn 2.20-24; Mc 10.8), unidos por Deus (Mt 19.6).

A constatação de Deus é que não seria bom para o homem permanecer só. É Deus mesmo quem percebe a necessidade ainda imperceptível ao homem. Tudo na criação era bom, exceto a solidão do homem. “Deus pôs o dedo na única deficiência existente no Paraíso”.[10] Waltke acentua que a declaração “é altamente enfática. Essencialmente, é ruim para Adão viver sozinho”.[11]

Gênesis inicia-se com uma belíssima descrição do cuidado de Deus para com suas criaturas, interpreta Waltke “As cenas da criação são pintadas como se um artista as visualizasse: Deus, como o oleiro, formando o homem; como jardineiro, designando um jardim de beleza e abundância; e como um edificador de templo, tomando a mulher da costela do homem”.[12]

O paraíso não era o céu.[13] O homem ainda não havia percebido isso, no entanto, Deus sabia que a solidão lhe faria mal. A carência vai se tornar evidente: Deus passou diante de Adão todos os animais para que ele pudesse nominá-los, distinguir cada uma das espécies.

Nesse contexto, notamos de passagem a inteligência de Adão. Ele possuía condições de discernir as espécies, exercitando a sua capacidade de julgar, atribuindo nomes que, certamente, estavam relacionados às características essenciais dos animais.[14] ****O homem percebia a essência da coisa, criando, assim, a linguagem. Ele tinha clareza, discernimento e unidade de pensamento incomparáveis. Sem dúvida, perdemos muito disso com a queda.[15]

  Aqui vemos de passagem a inteligência de Adão, tendo condições de discernir as espécies, exercitando a sua capacidade de julgar, atribuindo nomes que, certamente, estavam relacionados a características essenciais dos animais.[16]

Entre toda a Criação, não há uma companheira a altura do homem. Como ser sociável que é,[17] o homem necessitará de compartilhar conhecimentos e afetos; amar e ser amado. O homem, de fato, foi criado por Deus para viver em companhia de seus semelhantes, mantendo uma relação de ideias, valores e sentimentos. A permanecer assim, os seus sentimentos mais profundos permanecerão guardados; ele não terá um ser igual com quem possa compartilhar, amar, se emocionar, ensinar, aprender, se divertir. No entanto, o mesmo Deus que criou o homem, propõe-se a criar a sua companheira (Gn 2.21-22).

            Deus como uma espécie de “pai da noiva”[18] (“padrinho de casamento”), leva-a até o noivo (Gn 2.22).[19] Adão aprovou a nova criação de Deus. As primeiras palavras do homem registradas nas Escrituras, se configuram de forma poética: “Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne; chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada” (Gn 2.23). Agora tornou-se possível uma relação satisfatória para o homem e, ao mesmo tempo, eles poderão se perpetuar por meio da procriação – como ato que reflete a sua identidade de amor e complemento –, enchendo a terra e sujeitando-a, conforme a ordem divina (Gn 1.28). O Paraíso está pronto para se expandir.[20]

            Palmer Robertson comenta: “O ‘ser uma só carne’ descrito nas Escrituras não se refere simplesmente aos vários momentos da consumação marital. Em vez disto, esta unidade descreve a condição permanente de união alcançada pelo casamento”.[21]

Maringá, 16 de maio de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa



[1] Cf. Frank J. Kline, Família: In: Carl F. H. Henry, org. Dicionário de Ética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 294.

[2]Veja-se: Peter L. Berger; Thomas Luckmann, A Construção Social da Realidade,5. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1983, p. 175.

[3]Veja-se: P. Berger; T. Luckmann, A Construção Social da Realidade,p. 188,190,191,227.

[4] William Hendriksen, Exposição de Efésios, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, (Ef 5.22), p. 308.

[5] Veja-se: Donald D. Carson, O Deus amordaçado: o Cristianismo confronta o pluralismo.  São Paulo: Shedd Publicações, 2013, p. 46.

[6]Frank J. Kline, Família: In: Carl F. H. Henry, org. Dicionário de Ética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 297. Plantinga escreve de forma sensível: “Se elas (famílias] funcionam bem, tornam-se um microcosmo do reino de Deus, predispondo-nos à fé, à esperança e ao amor; e nos ensinando a paciência, suprindo a nossa memória com lembranças boas o suficiente para nos confortar numa noite solitária” (Cornelius Plantinga Jr., O Crente no Mundo de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 115).

[7]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 564.

[8] Veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 81-83.

[9]Ver: O. Palmer Robertson, Cristo dos Pactos,Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1997, p. 69.

[10]Raymond C. Ortlund, Jr., Igualdade Masculino-Feminina e Liderança Masculina: In: John Piper; Wayne Grudem, compiladores, Homem e Mulher: seu papel bíblico no lar, na igreja e na sociedade,São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 1996, p. 38.

[11]Bruce K. Waltke; Cathi J. Fredericks, Gênesis, São Paulo:Cultura Cristã, 2010, p. 104.

[12]Bruce K. Waltke; Cathi J. Fredericks, Gênesis, São Paulo:Cultura Cristã, 2010, p. 94.

[13]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 584.

[14]Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 591.

[15] Cf.  Abraham Kuyper,  Sabedoria & Prodígios: Graça comum na ciência e na arte,  Brasília, DF.: Monergismo, 2018, p. 47-62.

[16]Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 591.

[17]Ver: Aristóteles, A Ética, I.7.6. e A Política, I.1.9. Do mesmo modo, G.W. Leibniz, Novos Ensaios,São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 19), III.1.1. p. 167. Calvino (1509-1564), escreveu: “O homem é um animal social de natureza, consequentemente, propende por instinto natural a promover e conservar esta sociedade e, por isso, observamos que existem na mente de todos os homens impressões universais não só de uma certa probidade, como também de uma ordem civil” (João Calvino, As Institutas,II.2.13). Em outro lugar, entendendo que o princípio de que não seja bom que o homem viva sozinho não se restringe a Adão, diz que “o homem foi formado para ser um animal social”, acrescenta: “Mas ainda que Deus declarasse, no que respeita a Adão, que não lhe seria proveitoso viver sozinho, contudo não restrinjo a declaração unicamente à sua pessoa, mas, antes, a considero como sendo uma lei comum da vocação do homem, de modo que cada um deve recebê-la como dita a si próprio: que a solidão não é boa, excetuando somente aquele a quem isenta como que por um privilégio especial” (John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis,v. 1, (Gn 2.18), p. 128).

[18]Cf. Gerhard von Rad, Genesis: A Commentary,3. ed. (Revised Edition), Bllombsbury Street London, SCM Press Ltd., 1972, (Gn 2.21-23), p. 84.

[19] Cf. Gerhard von Rad, El Libro del Genesis,Salamanca: Sigueme, 1977, (Gn 2.22), p. 101.

[20] Diz a Confissão de Westminster: “O matrimônio foi ordenado para o auxílio mútuo de marido e mulher, para a propagação da raça humana por uma sucessão legítima, e da Igreja por uma semente santa, e para evitar-se a impureza. Ref. Gn 2.18 e 9.1; Ml 2.15; 1Co 7.2,9” (Confissão de Westminster,XXIV.2).

[21] O. Palmer Robertson, Cristo dos Pactos,p. 68. “A relação em ‘uma só carne’ envolve mais do que sexo; é a fusão de duas vidas em uma; é consentir em compartilhar a vida juntos, através do pacto do casamento; é a completa entrega de si mesmo a um novo círculo de existência, ao lado de um companheiro” (Raymond C. Ortlund, Jr., Igualdade Masculino-Feminina e Liderança Masculina: In: John Piper; Wayne Grudem, compiladores, Homem e Mulher: seu papel bíblico no lar, na igreja e na sociedade, p. 39).

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