A Pessoa e Obra do Espírito Santo (441)

6.4.12.1.2. A nulidade e loucura da sabedoria humana nas questões espirituais (Continuação)

O salmista comparando a grandeza de Deus com os ídolos feitos pelos homens, arremata: “Como eles se tornam os que os fazem, e todos os que neles confiam”(Sl 135.18). Os homens que se projetam em seus ídolos não têm alternativa possível, senão tornarem-se semelhantes à sua imagem que adoram, afinal, seus ídolos, nada lhes propõem, que já não seja da natureza de seus criadores.

            Este conceito encontramos também em Oséias, quando relembrando o pecado do povo de Israel no deserto, diz:         “…. mas eles foram para Baal-Peor, e se consagraram à vergonhosa idolatria, e se tornaram abomináveis como aquilo que amaram” (Os 9.10). A idolatria apenas forneceu as bases justificadoras da prática que desejavam.

Como a idolatria é a construção de um deus que se harmonize com seus desejos, nada mais natural de que esta construção humana termine por se tornar no seu modelo de vida e comportamento. Há aqui um círculo vicioso: Crio meus deuses com características semelhantes às minhas a fim de que ele se torne um modelo para que eu continue sendo o que sou, reforçando assim a minha prática.

            Vemos aqui a pertinência da crítica grega ao hábito de forjar seus deuses conforme os seus próprios vícios. Nestas críticas, destacamos: Xenófanes (c. 570-c.460 a.C.), Heráclito (c. 540-480 a.C.) e Empédocles (c. 495-455 a.C.).

            Xenófanes faz uma crítica perspicaz a Homero e Hesíodo:

Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo o que para os homens é opróbrio e vergonha: roubo, adultério e fraudes recíprocas.

Como contavam dos deuses muitíssimas ações contrárias às leis: roubo, adultério, e fraudes recíprocas.

Mas os mortais imaginam que os deuses são engendrados, têm vestimentas, voz e forma semelhantes a eles.

Tivessem os bois, os cavalos e os leões mãos, e pudessem, com elas, pintar e produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, e os bois semelhantes a bois, cada (espécie animal) reproduzindo a sua própria forma.

Os etíopes dizem que os seus deuses são negros e de nariz chato, os trácios dizem que têm olhos azuis e cabelos vermelhos.[1]

            Xenófanes propunha uma visão aparentemente próxima ao monoteísmo ou pelo menos, um “politeísmo não antropomórfico”,[2] mas, ainda assim, cosmológico, identificando, conforme pontua Aristóteles, o uno, ou seja, o universo,[3] como sendo Deus.[4] Xenófanes escreve: “Um único deus, o maior entre deuses e homens, nem na figura, nem no pensamento semelhante aos mortais”.[5] Na realidade, Xenófanes destaca um deus supremo acima dos demais deuses e dos homens.[6]

            Heráclito – a quem, juntamente com Sócrates, Justino considera cristão antes de Cristo[7] – ridiculariza o antropomorfismo e a idolatria da religião contemporânea, dirigindo a sua crítica à prática do sacrifício como meio de purificação, e às orações feitas às imagens: “Em vão procuram purificar-se, manchando-se com novo sangue de vítimas, como se, sujos com lama, quisessem lavar-se com lama. E louco seria considerado se alguém o descobrisse agindo assim. Dirigem também suas orações a estátuas, como se fosse possível conversar com edifícios, ignorando o que são os deuses e os heróis”.[8] Todavia devemos ressaltar que ele não era irreligioso, apenas discordava da prática religiosa que via.[9]

            Empédocles fala do privilégio de se conhecer a Deus, que é um ser espiritual:

Bem-aventurado o homem que adquiriu o tesouro da sabedoria divina; desgraçado o que guarda uma opinião obscura sobre os deuses.

Não nos é possível colocar (a divindade) ao alcance de nossos olhos ou de apanhá-la com as mãos, principais caminhos pelos quais a persuasão penetra o coração do homem.

Pois o seu corpo (da divindade) não é provido de cabeça humana; dois braços não se erguem de seus ombros, nem tem pés, nem ágeis joelhos, nem partes cobertas de cabelos; é apenas um espírito; move-se, santo e sobre-humano, e atravessa todo o cosmos com rápidos pensamentos.[10]

            A idolatria traz um desequilíbrio no cerne do pensamento humano, se manifestando em todas outras áreas de sua vida, ainda que nem sempre de modo imediatamente perceptível: a idolatria tende a ser desagregadora do caráter ainda que possa se esconder sob a capa da compreensão tolerante. A idolatria é uma doença espiritual resultante da carência de Deus e da procura equivocada do sagrado.  

            É por isso que a sabedoria deste mundo é nula no que diz respeito ao conhecimento das coisas espirituais. Estamos totalmente cegos. A nossa percepção não alcança nada além do mundo e de seus valores terrenos.[11] “Os homens são estúpidos e jamais entendem coisa alguma pertencente à sua salvação sem que Deus opere neles”.[12]

Maringá, 25 de março de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Xenófanes, Fragmentos, 11-16. In: Gerd A. Bornheim, org. Os Filósofos Pré-Socráticos, 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1977, p. 32. Mais tarde, um escritor cristão do segundo século, fazendo uma apologia do Cristianismo – que estava sendo severamente perseguido durante o reinado de Adriano (117-138 AD), a quem destina o seu escrito – critica o politeísmo grego (Veja-se, em especial: Aristides de Atenas, Apologia,I.8-9. In: Padres Apologistas,São Paulo: Paulus, 1995, p. 43-45).

[2] W.K.C. Guthrie, Os Sofistas,São Paulo: Paulus, 1995,p. 211.

[3]Ver: Giovanni Reale; Dario Antiseri, História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média, São Paulo: Paulus, 1990, v. 1, p. 49.

[4] Aristóteles, Metafísica,São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 4), 1973, I.5, p. 223.

[5] Xenófanes, Frag.,23.

[6] Cf. Étienne Gilson, O Espírito da Filosofia Medieval, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 55.

[7]Justino de Roma, I Apologia, São Paulo: Paulus, 1995, 46.3. p. 61-62.

[8]Heráclito, Frag., 5. Veja-se também: Frag., 14. Sobre Heráclito, Bréhier comenta: “A sabedoria de Heráclito despreza o que ao vulgo se refere: a começar pela religião popular, a veneração das imagens e, particularmente, os cultos misteriosos, órficos ou dionisíacos [Frags., 5,14,15], com suas ignóbeis purificações pelo sangue, os traficantes de mistérios, que alimentam a ignorância dos homens sobre o além” (É. Bréhier, História da Filosofia, São Paulo: Mestre Jou, 1977, I/1, p. 53).

[9]Heráclito, Frags., 14/67.

[10]Empédocles, Fragmentos, 132-134. In: Gerd A. Bornheim, org. Os Filósofos Pré-Socráticos, 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1977, p. 80-81.

[11] Veja-se: João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 153ss.

[12]João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 154.

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