A Pessoa e Obra do Espírito Santo (437)

6.4.11.2. Intercessão pela família de Deus

Em suas constantes orações, Paulo revelava a sua fé em Deus e o seu amor, recordando sempre de seus irmãos. A fé e o amor presentes entre os crentes efésios transbordam na vida e nos escritos do Apóstolo.

            Algo em especial me chamou a atenção no final das provações de Jó. Ele confessa ter aprendido muito com Deus e com as suas ações. Deus repreende os amigos de Jó pela sua precipitação e por dizer coisas não verdadeiras a respeito do Senhor. Por determinação de Deus, eles agora deveriam apresentar um sacrifício ao Senhor. Jó intercederia por eles (Jó 42.7-9). O curioso no texto é que até agora a situação de Jó não havia mudado; ele continuava de luto pelos seus filhos, sem bens e sob os efeitos dos males que lhe sobrevieram. No entanto, relata o texto: “Mudou o SENHOR a sorte de Jó, quando este orava pelos seus amigos; e o SENHOR deu-lhe o dobro de tudo o que antes possuíra” (Jó 42.10).

            Jó não questionou a ordem de Deus, não fez menção de a quantos sofrimentos seus amigos, devido a uma teologia mal aplicada,[1] lhe submeteram. Simplesmente obedeceu. Possivelmente aqui, temos o último teste de Jó. Ele obedeceu a Deus e, então, o Senhor o abençoou: “….e o SENHOR deu-lhe o dobro de tudo o que antes possuíra” (Jó 42.10).

            Não transformemos isso em um joguinho com Deus. Não sejamos tentados a pensar: vou interceder pelo meu irmão. Continuamos: Enquanto isso o Senhor vai duplicar os meus bens. Neste caso, se Deus duplicar a sua sensibilidade será uma coisa magnífica. Mas, também não funciona assim.

            Temos aqui a ilustração de um princípio de obediência e total consagração. Conseguir superar as nossas dificuldades e apreensões para pensar e orar pelos nossos irmãos é por si só algo resultante da graça operante de Deus. Isto, já é uma grande bênção! A partir daí as nossas angústias parecem diminuir, adquirimos um novo olhar e perspectiva e, neste processo, inclusive, Deus nos abençoa e manifesta de forma poderosa a sua misericórdia sobre nós, até mesmo, conforme a nossa necessidade e sua vontade, com bens materiais.

            Neste particular, Calvino, atento ao pastoreio e corretamente zeloso pelo ensino da sã doutrina, insiste no fato de que o pastorado envolve não somente o ensino, mas, também, a intercessão pelos fiéis. “Aqueles que pretendem que seu labor seja proveitoso para a edificação da igreja, e aqueles que possuem zelo verdadeiro, não apenas se devem entregar ao ensino; mas, também, paralelamente, orar a Deus para operar com eles pelo poder e pela graça”.[2]

            Retornando ao texto de Efésios, vemos que Paulo não orava apenas genericamente, mas, também pela igreja de Éfeso, intercedendo por ela: 16 ….fazendo menção (mnei/a) de vós nas minhas orações, 17 para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele” (Ef 1.16-17).

            A palavra traduzida por menção (mnei/a) (= lembrança, memória), é empregada exclusivamente por Paulo no Novo Testamento.[3] Esta era uma característica sincera do Apóstolo: orar por seus irmãos. Ele cultivava em sua memória e pensamentos a situação de seus irmãos, tendo ciência de suas lutas, dificuldades, fraquezas, tentações e vitórias.

            Aos Romanos, escreveu: 9Porque Deus, a quem sirvo em meu espírito, no evangelho de seu Filho, é minha testemunha de como incessantemente faço menção (mnei/a) de vós 10 em todas as minhas orações….” (Rm 1.9,10).

            Aos Filipenses:        “Dou graças ao meu Deus por tudo que recordo (mnei/a) de vós” (Fp 1.3).

            Aos Tessalonicenses: “Damos, sempre, graças a Deus por todos vós, mencionando-vos (mnei/a) em nossas orações e, sem cessar” (1Ts 1.2).

            Ao seu discípulo Timóteo:                 “Dou graças a Deus, a quem, desde os meus antepassados, sirvo com consciência pura, porque, sem cessar, me lembro (mnei/a) de ti nas minhas orações, noite e dia” (2Tm 1.3).

            Ao seu amigo Filemon:      4Dou graças ao meu Deus, lembrando-me, (mnei/a) sempre, de ti nas minhas orações, 5 estando ciente do teu amor e da fé que tens para com o Senhor Jesus e todos os santos” (Fm 4-5).

            Quando oramos pela igreja, pelos nossos irmãos, e até mesmo pelos nossos aparentes inimigos, estamos agindo como o nosso Senhor. Ele também, vivendo na plenitude do Espírito, intercedeu pelos seus discípulos, pelos seus inimigos, pelos seus algozes e, também, intercede por nós, pela Igreja.

            Intercedemos fundamentados em sua obra. A nossa confiança e consolo é saber da plena eficácia da intercessão de Cristo. Calvino revela uma percepção acertada ao escrever:

Não carecemos de nutrir nenhuma preocupação de que Deus rejeite as nossas orações em favor da Igreja, visto que o nosso Rei celestial nos precedeu para fazer intercessão por ela, de modo que, ao orarmos por ela, estamos apenas nos diligenciando por seguir seu exemplo.[4]

            A prática da intercessão revela a nossa irmandade em Cristo Jesus e nosso amor fraternal.[5] Devemos estar atentos às necessidades de nossos irmãos e interceder por eles. Nesta prática revelamos a nossa sensibilidade espiritual.[6]

            Ao intercedemos pelos nossos irmãos, estamos dividindo as suas cargas, amenizando o seu sofrimento e fortalecendo o seu coração.

            Paulo, preparando-se para uma viagem à Jerusalém, desejando passar por Roma para levar a oferta para os necessitados da igreja, sabe que terá muitas dificuldades para cumprir sua missão; por isso, roga aos crentes romanos que “luteis juntamente comigo nas orações a Deus a meu favor” (Rm 15.30). Calvino comenta:

Pelo termo luteis ele indica as dificuldades nas quais é colocado, e ao suplicar a ajuda deles nesta batalha, ele nos mostra a sensibilidade que deve inspirar as orações formuladas pelos crentes em favor de seus irmãos. Diz ele que realmente devem tomar parte nas aflições de seus irmãos como se estivessem colocados nas mesmas circunstâncias difíceis. Também mostra o efeito que tais orações têm. O crente que apresenta um irmão ao Senhor proporciona-lhe uma grande medida de apoio ao receber uma porção das aflições dele sobre si mesmo. Se porventura nossa força depende das orações dirigidas a Deus, então o caminho mais seguro para fortalecermos nossos irmãos é orando a Deus em favor deles.[7]

            Não há ninguém neste mundo que não necessite das orações de seus irmãos. Comentando o pedido de Paulo no sentido de que a igreja intercedesse por ele (Ef 6.19), conclui: “Não existe pessoa que seja tão ricamente dotada com dons que não necessite desse gênero de assistência por parte de seus irmãos, enquanto estiver neste mundo”.[8]

            O missionário presbiteriano Ashbel G. Simonton (1833-1867), no seu primeiro mês de residência no Brasil (1859), sentia-se só. Além de solteiro, ainda não tinha amigos cristãos com os quais pudesse conversar mais intensamente. Todavia, ele se alegrou muito quando recebeu cartas de seus irmãos e do seu cunhado, dizendo que estavam orando por ele. Simonton, então escreveu em seu Diário:

Mais duro do que estar separado dos amigos é não ter amigos em Cristo cujas orações nos seguem mesmo longe, enquanto andamos nosso caminho. É um conforto saber que, embora minha fé seja tão pequena que não sei orar por mim próprio, outros oram por mim e sei que são povo de Deus.[9]

            O profícuo pregador do século XX, Lloyd-Jones (1899-1981), que enfrentou tantas dificuldades em seu ministério, pastoreando em Londres a Capela de Westminster em pleno bombardeio nazista durante a Segunda Guerra Mundial,[10] anos depois, escreveria (1952): “Não conheço nada que me encoraje mais, em meu trabalho e em meu ministério, do que saber que há pessoas orando por mim. Eles recorrem a Deus, que é a fonte de todo poder, e Lhe pedem que me encha de poder”.[11]

            Desenvolvamos, portanto, esta prática com sincera sensibilidade e confiança no cuidado providente de Deus. Ele, soberana e misericordiosamente, leva em consideração as nossas orações em seus propósitos eternos.[12]

            A Igreja considerando os feitos de Deus cultiva uma grata memória do seu cuidado e de como, a despeito de nossos pecados, Ele, por meio do Espírito, nos congrega constituindo o seu povo, a sua família, a família da fé, a família de Deus.

Maringá, 19 de março de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa



[1]Calvino está correto ao declarar: “Toda teologia, quando alienada de Cristo, é não só vã e confusa, mas também nociva, enganosa e espúria; porque, ainda que os filósofos às vezes pronunciassem ditos excelentes, contudo nada têm senão o que é transitório e ainda eivado de sentimentos ímpios e errôneos” (João Calvino, Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 2, (Jo 14.6), p. 93).

[2]João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 130.

[3] *Rm 1.9; Ef 1.16; Fp 1.3; 1Ts 1.2; 3.6; 2Tm 1.3; Fm 4.

[4]João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 21.1), p. 456. Vejam-se: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.9), p. 91-139; João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 7.26), p. 199.

[5] Vejam-se: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.9), p. 91-139; João Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 2.4), p. 61.

[6]Veja-se: João Calvino, Efésios, (Ef 6.18), p. 196.

[7]João Calvino, Romanos, 2. ed.(Rm 15.30), p. 517-518.

[8]João Calvino, Efésios, (Ef 6.19), p. 196. “Visto, pois, que ser assistido pelas orações dos crentes é uma bênção divina tão rica que mesmo Paulo, o instrumento eleito de Deus, não sonhava em negligenciá-la, seremos muitíssimo remissos se criaturas indignas e miseráveis como nós a desprezarmos” (João Calvino, Romanos, 2. ed. (Rm 15.30), p. 517).

[9]A.G. Simonton, Diário, 1852-1867, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana; O Semeador, 1982, 15/09/1859.

[10] Escreve seu biógrafo: “No fim da Segunda Guerra Mundial ele tinha acompanhado a Capela de Westminster através de sete dos seus anos mais difíceis, e agora estava com quarenta e cinco anos de idade. Mas estava longe ser óbvio para o pregador que seu trabalho deveria continuar ali….” (Iain H. Murray, A vida de D. Martyn Lloyd-Jones 1899-1981: uma biografia, São Paulo; Publicações Evangélicas Selecionadas, 2014, p. 275).

[11]D.M Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 1), p. 20.

[12]“Para incitar os verdadeiros crentes a uma mais profunda solicitude à oração, Ele promete que, o que propusera fazer movido por Seu próprio beneplácito, Ele concederia em resposta a seus pedidos. Tampouco existe alguma inconsistência entre estas duas verdades, a saber: que Deus preserva a Igreja no exercício de sua soberana mercê, e que Ele a preserva em resposta às orações de Seu povo. Pois, visto que suas orações se acham conectadas às promessas graciosas, o efeito daquelas depende inteiramente destas” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 102.17), p. 578). Vejam-se também: J.I. Packer, Providência: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 3, p. 1338.

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