A Pessoa e Obra do Espírito Santo (391)

6.4.9.2. Confere dons à igreja  (Continuação)

Insisto: O carisma traz implicações de responsabilidade com a edificação de nossos irmãos. Na Igreja de Cristo, não pode haver a divisão entre aqueles que trabalham e os que apenas ouvem comodamente. Todos somos chamados e capacitados ao trabalho cristão.[1]

          Notemos também, que Paulo diz que todos os membros da Igreja são santos. Isso aponta para o nosso privilégio (somos santificados em Cristo Jesus) e nossa responsabilidade (devemos progredir em santidade). Neste ponto, a Igreja sofre tremendamente, porque ela abandonou a sua realidade e a sua meta de santidade (separação) e cada vez mais intensamente se parece com o mundo: na sua forma de pensar, de falar, de sentir, de vestir e de fazer.

          Ao invés desse comportamento aprendido por osmose sugerir maturidade, é, na verdade, um sintoma de infantilidade crônica: temos de modo demasiado, falado, sentido e pensado como meninos; enquanto que o propósito de Deus para o seu povo é o inverso: que pensemos, sintamos e falemos como pessoas maduras na fé (1Co 13.11/1Co 3.1-2; Hb 5.11-14; 2Pe 3.18).[2] Paulo contrasta aqui os “meninos” (nh/pioj = “bebê”, “imaturo”, “criança pequena”) (Ef 4.14)com a “perfeição” (te/leioj = “maduro”) (Ef 4.13).

          Calvino aplica: “Crianças são aqueles que ainda não deram um passo no caminho do Senhor, senão que hesitam, que não determinaram ainda que rumo devem tomar, mas que se movem às vezes numa direção e às vezes noutra, sempre duvidosos, sempre ziguezagueando”.[3]

          As crianças devido à sua ingenuidade, são mais influenciáveis, dadas à instabilidade. Os pagãos apresentam este comportamento, sendo conduzidos por qualquer nova doutrina. Em Listra, conduzidos por suas lendas,[4] pensaram que Paulo e Barnabé fossem Júpiter e Mercúrio, querendo a todo custo oferecer-lhes sacrifícios. Pouco depois, influenciados pelos judaizantes, apedrejaram a Paulo, deixando-o quase morto (At 14.8-20). Por sua vez, “o progresso da igreja é marcado por um crescimento da infância até a maturidade, na medida que ela assume o caráter de sua cabeça, Cristo”, pontua Martin (1925-2013).[5]

          Paulo para descrever esta inconstância infantil, usa um termo náutico que se refere a uma pequena embarcação que, em mar aberto não consegue manter o curso certo (kludwni/zomai = “ser arrastado, levado pelas ondas”) (Ef 4.14). Metaforicamente tem o sentido de “ser agitado mentalmente”. A ideia é a de andar em círculos, diante da variedade de ensinamentos. “Ele os compara com as palhas ou outros elementos leves, os quais são rodopiados pela força do vento a soprar em círculo ou em direções opostas”, interpreta Calvino.[6]

          Tomando as figuras usadas por Paulo, podemos observar que a criança gosta de entretenimento, novidade e indisciplina; se não tivermos firmeza doutrinária, se não estivermos ancorados na Palavra, seremos conduzidos de forma constante e sem direção.

          Este exemplo negativo, temos nos gálatas, aos quais, Paulo escreve: “Admira-me que estejais passando tão depressa daquele que vos chamou na graça de Cristo, para outro evangelho”(Gl 1.6). “Vós corríeis bem; quem vos impediu (e)gko/ptw)[7] de continuardes a obedecer à verdade?” (Gl 5.7). Este impedimento pode ser proveniente do diabo por meio de seus agentes (1Ts 2.14-18) ou do próprio coração humano, onde reside a raiz de nossos pecados.[8]

          Calvino descrevendo a facilidade com que quase todos se curvaram diante do decreto idólatra de Nabucodonosor (Dn 3.2-7), sustenta que a base de nossa firmeza doutrinária está no apego irrestrito à Palavra:

Nada é firme, nada é estável entre os gentios; indivíduos que não foram instruídos na escola de Deus o que significa a verdadeira religião. Pois oscilam a todo instante ao sabor de qualquer brisa. Assim como as folhas se movem quando o vento sopra por entre as árvores, assim também todos os que não estão enraizados na verdade de Deus oscilarão e serão lançados para frente e para trás quando algum vento começa a soprar. O decreto régio não constitui uma brisa leve, e, sim, uma violenta tempestade. Pois ninguém pode opor-se impunemente aos reis e a seus editos. Por isso, sucede que os que não se acham plantados na Palavra de Deus, e não entendem absolutamente nada do que é verdadeira piedade, são arrastados pela investida de tal pé-de-vento”.[9]

          E quanto aos dons espirituais? Creio os dons miraculosos serviram para autenticar a mensagem apostólica, ainda que não somente por intermédio dos apóstolos mas, proveniente deste fundamento amparado em Cristo.[10]

          Calvino com bastante sobriedade, ensina: “O primeiro princípio a considerar é que se os dons de Deus são dirigidos ao mesmo propósito para o qual foram criados e destinados, não podem ser utilizados equivocadamente”.[11]

          Creio que a discussão infindável e quase indecifrável deste assunto nos desvia mais de nosso serviço do que edifica a Igreja.

          Entendo que o cristão deve procurar obedecer a Deus em todas as esferas sem maiores preocupações com seus “dons”. O fato de crermos ou não na contemporaneidade dos dons, não nos torna mais ou menos crentes. Devemos sim nos aperfeiçoar naquilo que Deus nos confere a fazer agora. No futuro, Deus em sua soberania poderá nos incumbir de uma tarefa bastante distinta para a qual, pensamos corretamente, não ter a mínima habilidade. No entanto, sem dúvida, Ele proverá os meios para o desempenho de nosso ofício.[12] Nos múltiplos atos de obediência submissa a Deus vamos nos aperfeiçoando para tarefas que virão, por vezes, em escalas superlativas mas, que por graça formos forjados no desempenho de diversas atividades aparentemente nada relacionadas.

          Deus pode ser valer de seus servos para realizar algo miraculoso? Não tenho a menor dúvida. Apenas não creio que haja pessoas ontologicamente específicas para serem instrumentos de Deus para tal missão. Todos nós em ocasiões diferentes somos chamados a tais realizações que terão maior ou menor visibilidade, mas, concretizadas porque Deus nos equipou com seus dons para isso.

          Por isso mesmo, devemos continuar orando pelos enfermos para que Deus os cure se for a sua vontade, buscando uma melhor compreensão da Palavra,  a pregando com fidelidade e sabedoria, procurando exercer misericórdia, amando com conhecimento e percepção, socorrendo nossos irmãos, aconselhando-os, animando-os, etc. Bem. Creio que isso deve caracterizar a vida cristã e, por isso mesmo, a riqueza de dons concedidos à sua Igreja.

          Agora, Deus já atendeu a minha oração restabelecendo a saúde de um irmão? Não sei. Alguém pode ser convertido por meio da pregação de um pregador com motivações equivocadas? Não tenho dúvida.

          O que quero dizer, é que devemos servir a Deus onde Ele nos colocar. Ele proverá os recursos (dons). Durante este processo de consciência de incapacidade e recepção da graça, amadureceremos e edificaremos a Igreja. A graça do crescimento é-nos concedida enquanto exercitamos nossos dons. Isso, longe de significar o desleixo para com que o Senhor nos tem dado, antes, o desejo de servi-lo onde Ele nos colocar/enviar, atentando para as necessidades prementes que se configurarem diante de nós.

          A Igreja, por concessão do Rei, tem todos os dons necessários para a sua caminhada. Indivíduos são usados aqui e ali no emprego destes dons para o serviço dos demais. No entanto, nenhum de nós é proprietário dessa graça mas, agentes, servos  designados conforme Deus nos instituiu em lugares e circunstâncias diferentes.

          O que me consola sempre, é saber que Deus usou a jumenta de Balaão. Desejando, Ele, em sua misericórdia, nos usará também. Sejamos como o jumentinho que conduziu o Rei Jesus. Levemos a sua mensagem com humildade, simplicidade e fidelidade. O Evangelho é poderoso justamente porque é o poder de Deus para a salvação (Rm 1.16).

Maringá, 26 de janeiro de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]“Não há crescimento em igrejas que dependem de algumas poucas pessoas e os demais membros são espectadores. Sempre existe progresso e multiplicação em igrejas cujos membros são vibrantes e intentam servir a Cristo” (Iain Murray, A Igreja: Crescimento e Sucesso: In: Fé para Hoje,São José dos Campos, SP.: Fiel, nº 6, 2000, p. 20).

[2] “Eu, porém, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, e sim como a carnais, como a crianças em Cristo. Leite vos dei a beber, não vos dei alimento sólido; porque ainda não podíeis suportá-lo. Nem ainda agora podeis, porque ainda sois carnais” (1Co 3.1-2).“A esse respeito temos muitas coisas que dizer e difíceis de explicar, porquanto vos tendes tornado tardios em ouvir. 12 Pois, com efeito, quando devíeis ser mestres, atendendo ao tempo decorrido, tendes, novamente, necessidade de alguém que vos ensine, de novo, quais são os princípios elementares dos oráculos de Deus; assim, vos tornastes como necessitados de leite e não de alimento sólido. 13 Ora, todo aquele que se alimenta de leite é inexperiente na palavra da justiça, porque é criança. 14 Mas o alimento sólido é para os adultos, para aqueles que, pela prática, têm as suas faculdades exercitadas para discernir não somente o bem, mas também o mal” (Hb 5.11-14/2Pe 3.18). (grifos meus).

[3] João Calvino, Efésios,(Ef 4.14), p. 127.

[4] Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Eu Creio,São Paulo: Parakletos, 2002, p. 250-251.

[5]Ralph P. Martin, Efésios: In: Comentário Bíblico Broadman, Rio de Janeiro: JUERP., 1985, v. 11, p. 190.

[6] João Calvino, Efésios,(Ef 4.14), p. 128.

[7] No seu emprego militar esta palavra tinha o sentido de cortar uma árvore para causar um impedimento ou, abrir uma vala que obstaculizasse temporariamente o caminho do inimigo, daí a palavra tomar o sentido de “impedimento”, “empecilho”, “obstáculo”, “cansar”, “sobrecarregar”.    (Vejam-se: G. Stählin, Kopeto/j, etc.: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1981 (Reprinted), v. 3, p. 855-860; C.H. Peisker, Impedir: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 2, p. 417-418; William F. Arndt; F.W. Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, Chicago, University Press, 1957, p. 215; F.F. Bruce, Hechos de los Apóstoles: Introcucción, comentarios y notas, Michigan: Libros Desafío, 2007, (At 24.4), p. 513-514).

[8] Cf. G. Stählin, Kopeto/j, etc.: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 3, p. 856-857.

[9] João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.2-7), p. 190.

[10] Veja-se: B.B. Warfield,  Counterfeit Miracles, Carlisle: Pennsylvania: The Banner of Truth Trust,  © 1918, 1995 (Reprinted), p. 5-6.

[11] João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 71.

[12] “A Igreja de Cristo recebeu enorme abundância de dons espirituais e atualmente nós temos à disposição não apenas os dons das igrejas da nossa própria cidade, mas todos aqueles comunicados às igrejas de todas as partes do capital histórico acumulado durante 18 séculos” (Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 211). Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 362.

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