A Pessoa e Obra do Espírito Santo (365)

c) Louvando a Deus (Continuação)

A Reforma e o canto

Pois de que é capaz um velho coxo senão cantar um hino a Deus? Se eu fosse um rouxinol, eu cantaria os cantos do rouxinol. Se eu fosse um cisne, cantaria os cantos do cisne. Ora, sou um animal racional. Devo cantar um hino a Deus. Essa é a minha tarefa. Eu a cumprirei. Não abandonarei este posto que me foi dado. – Epicteto (c. 55- c.135 A.D.[1]

          Os hinos foram instrumentos poderosos de proclamação e profissão de fé entre os protestantes.

          Noll comentou:

A enxurrada de hinos protestantes que inundou a Europa juntamente com as primeiras crises da Reforma criou dificuldades incomuns para a Igreja Católica Romana. O canto congregacional estava associado ao protestantismo de maneira tão profunda e os protestantes foram tão eficazes na utilização dos hinos que alguns personagens importantes da Igreja Católica por breve tempo consideraram a proibição da música nas missas.[2]

          Lutero (1483-1546), nutria profundo respeito e encanto pelos Salmos. No seu Prefácio ao Livro dos Salmos narra historicamente como os Pais da Igreja amavam esse livro. Ele demonstra em todo prefácio a sua gratidão a Deus pela redação e preservação dos salmos. Ele denomina o livro de salmos de uma “pequena Bíblia”.[3]

          Para os Reformadores os cânticos tinham um grande apelo didático, objetivando inclusive, a fixação das Escrituras (Dt 31.19).[4] Como a Escritura é a Palavra de Deus, cantá-la, significa relembrar e fixar os seus ensinamentos.[5]

          Calvino não ignorava o poder da música, estando familiarizado com a posição inclusive de pensadores pagãos:

Todos sabemos pela própria experiência, quão tremendo é o poder da música para agitar as emoções do ser humano; como corretamente ensina Platão, dizendo que, de uma forma ou outra, a música é da maior importância para moldar o caráter moral do Estado.[6]

          O canto tem também uma relação direta com a nossa experiência religiosa, não estando relacionado simplesmente a momentos de lazer e entretenimento. O cantar além de refletir a nossa fé – por se amparar o seu conteúdo na Palavra –, tem também uma conotação de lembrete e estímulo espiritual, mesmo para aquele que canta; é como o “falar entre vós com salmos”,recomendado por Paulo (Ef 5.19).

          Comentando o salmo 13, quando Davi em grande aflição, conclui o salmo dizendo: “Cantarei ao Senhor, porquanto me tem feito muito bem”, Calvino diz: ”Davi, ao apressar-se com prontidão de alma a cantar os benefícios divinos, mesmo antes que os houvesse recebido, coloca o livramento, que aparentemente estava então distante, imediatamente diante de seus olhos”.[7]

          Uma fé que se expressa em cântico se fortalece do seu próprio conteúdo proveniente da Palavra de Deus.

          Calvino também optou pelo cântico de Salmos, entendendo que somente a Palavra de Deus era digna de ser cantada. No Prefácio do Saltério Genebrino, explica-nos os motivos dessa prática:

Os salmos nos incitam a louvar a Deus, orar a Ele, meditar nas Suas obras a fim de que O amemos, temamos, honremos e O glorifiquemos. O que Santo Agostinho diz é totalmente verdade; a pessoa não pode cantar nada mais digno de Deus do que aquilo que recebemos dele.[8]

          Aqui, obviamente, está implícito o princípio da inspiração bíblica: Os Salmos provêm do Espírito Santo.

O louvor congregacional e o uso de instrumentos

          O cântico congregacional – que como tudo o mais deve ser acompanhado do verdadeiro afeto do coração[9] –, tornou-se uma parte importante na liturgia de Calvino.[10] Com o passar do tempo, o cântico a quatro vozes era utilizado no culto,[11] todavia, enfatizou o cântico congregacional.

          Ainda que Calvino fosse apreciador da harpa,[12] os cânticos eram como na sinagoga, sem acompanhamento instrumental.[13] Calvino entendia que algumas práticas do Antigo Testamento faziam parte da infância espiritual do povo;[14] entre elas, inclui o uso de instrumentos no culto:

Os levitas, sob a lei, eram justificados ao fazer uso de música instrumental no culto divino. (…) Seu intuito era treinar seu povo, enquanto eram ainda imaturos e semelhantes a crianças, necessitando de tais rudimentos, até a vinda de Cristo.[15] Mas então, quando a lídima luz do evangelho já dissipou as sombras da lei, e já nos ensinou que Deus deve ser servido numa forma mais simples, estaremos agindo como tolos e equivocados imitando aquilo que o profeta ordenou somente aos de seu próprio tempo.[16]

          Em outro lugar falando sobre o emprego dos instrumentos musicais por parte dos levitas e seu uso em geral, comenta:

Não como se fossem em si mesmos necessários, mas só eram úteis como um auxílio elementar ao povo de Deus nos tempos antigos. Não devemos imaginar que Deus prescreveu a harpa como se sentisse, como nós, deleite na mera melodia dos sons; porém os judeus, que já estavam sob o peso dos anos, se restringiam ao uso de elementos tão infantis. O propósito deles era estimular os adoradores e incitá-los a mais ativamente exercer a celebração do louvor divino de todo o coração. Devemos lembrar que o culto divino nunca deve ser tomado como que consistindo em tais serviços externos, os quais só eram necessários para ajudar um povo fervoroso, porém ainda fraco e rude de conhecimento, no culto espiritual celebrado a Deus. É preciso observar a diferença, neste aspecto, entre seu povo sob o Velho e sob o Novo Testamento; pois agora em Cristo já se manifestou, e a Igreja já alcançou a plena maturidade, se introduzíssemos as sombras de uma dispensação expirada só iríamos sepultar a luz do evangelho. Disto transparece que os papistas, como tive ocasião de mostrar em outro lugar, ao empregarem música instrumental, não se pode dizer que imitam a prática do antigo povo de Deus, mas o imitam de uma maneira insensata e absurda, exibindo um tolo deleite naquele culto do Velho Testamento que era figurativo e que foi extinto com a vinda do Evangelho.[17]

Seria apenas arremedo se seguíssemos Davi hoje cantando com címbalos, flautas, tamborins e saltérios. De fato, alguns cristãos foram seriamente enganados em seu desejo de adorar a Deus com essa inclusão pomposa de órgãos, trombetas, oboés e instrumentos semelhantes. Isso só tem servido para deleitar o povo em sua vaidade e afastá-lo da verdadeira instituição que Deus tinha ordenado. Devemos, ao mesmo tempo, ser conscientes de todos os privilégios que temos em comum com os pais que viveram sob a lei e, por outro lado, devemos ser conscientes de todas as coisas pelas quais eles são separados de nós. Todas as coisas que temos em comum com eles são permanentes e devem ser mantidas até o fim do mundo. Mas não devemos continuar observando aquelas coisas que eram apenas para o tempo da lei, a menos que queiramos fazer uma mistura confusa que emaranhe céu e terra. Em uma palavra, os instrumentos musicais eram da mesma categoria de sacrifícios, candelabro, lâmpadas e coisas similares. (…)[18]

Como dissemos, devemos observar que aquilo que Deus instituiu para o tempo de símbolos (antes da vinda de nosso Senhor Jesus Cristo) deve ser deixado de lado e não aplicado hoje. É verdade que Deus deve ser louvado de coração, por instrumentos musicais e pela boca. Mas outra coisa é quando conduzimos a adoração a Deus na igreja. Se quisermos cantar louvores em nome de Deus, faremos muito melhor se cantarmos salmos, em vez de cânticos dissolutos comuns. Cantamos para dar-lhe graças – e não para produzir uma cerimônia solene como uma obra meritória que realizamos para Deus. Aqueles que adotam essa abordagem estão voltando a um tipo de judaísmo, como se quisessem misturar lei e evangelho, e, assim, sepultar o nosso Senhor Jesus Cristo. Quando somos informados que Davi cantou com instrumentos musicais, devemos nos lembrar cuidadosamente que não devemos fazer disso uma norma. Em vez disso, devemos reconhecer hoje que devemos cantar louvores a Deus com simplicidade, visto que as sombras da lei são passadas e, em nosso Senhor Jesus Cristo temos a verdade e a personificação de todas as coisas que foram dadas aos antigos pais no tempo de sua ignorância ou pequenez de fé. Eles não tinham a revelação que temos hoje no evangelho.[19]

Maringá, 11 de dezembro de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Epicteto, As Diatribes de Epicteto, livro I, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2020, I.16.20. p. 118.

[2]Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2000, p. 206.

[3] M. Lutero, Prefácio ao Livro dos Salmos: In: Martinho Lutero: obras selecionadas, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia, 2003, v. 8, p. 34.

[4] Ver: John A. Hughes, Por que Educação Cristã e não Doutrinação Secular?: In: John MacArthur, ed. ger. Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 389.

[5] Vejam-se: João Calvino, As Institutas,III.20.28,31,32; Confissão de Westminster,21.5; Segunda Confissão Helvética,XXIII, § 5.221. Também a Confissão Luterana: Confissão de Augsburgo(1530), XXIV. (Vejam-se: Felipe Fernández-Armesto; Derek Wilson, Reforma: O Cristianismo e o Mundo 1500-2000,Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 163-164 e Hughes Oliphant Old, Worship: That Is Reformed According to Scripture, Atlanta: John Knox Press, 1984,p. 52-53).

[6] João Calvino, Exposição de 1 Coríntios,São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 14.7), p. 414. Veja-se por exemplo: Platão, A República,424b e ss. p. 168-170.

[7] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, (Sl 13.6), v. 1, p. 269.

[8]In: Herman J. Selderhuis, ed., Calvini Opera Database 1.0. Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 6, col. 171-172.

[9]Cf. João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.9), p. 113.

[10]Veja-se: As Institutas,III.20.31-32. Antes de Calvino ser persuadido a permanecer em Genebra (1536), a desafiante reforma em processo, feita pelo destemido Farel (1489-1565), além de limpar o templo de resquícios católicos, “tudo o que fez quanto à execução do culto divino foi musicar o Credo Apostólico e os Dez Mandamentos, e mandar cantá-los pela congregação. (…) Mas, até o momento, nem um livro de hinos, nem liturgia ajudavam as devoções dos fiéis” (Charles W. Baird, A Liturgia Reformada: Ensaio histórico,Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 20).

[11]Cf. John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã,p. 337 seguindo aqui as conclusões de Doumergue.Contraste esta informação com o próprio conceito de Calvino, As Institutas,III.20.32.

[12]Ver: John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 1, (Gn 4.20), p. 217-218; João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 92.3), p. 461; Vicente Temudo Lessa, Calvino 1509-1564: Sua Vida e Obra,São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, [s.d.], p. 118. No século XVI, inclusive, as harpas eram bastante utilizadas em música sacra (Cf. Stanley Sade, ed. Dicionário Grove de Música: Edição concisa, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994, “Harpa”, p. 409-411).

[13] W. Stanford Reid, El Culto Reformado: In: R. G. Turnbull, ed. ger. Diccionario de la Teología Práctica, Grand Rapids, Michigan: SLC., 1977, p. 42. Lembremo-nos de que a música estava subordinada à Palavra e que o órgão era usado no século XVI com “propósitos não litúrgicos” (John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã,p. 336).

[14] Veja-se também: João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 24.7), p. 533.

[15] “Quanto aos instrumentos musicais, reconheço que eles foram usados pela Igreja de Deus e, aliás, por ordem divina. Entretanto, o povo de Deus tinha uma maneira e os caldeus outra. Pois a despeito de os judeus usarem trombetas e alaúdes e instrumentos musicais nos louvores a Deus, eles não estavam impingindo isso sobre o Senhor como um rito inerentemente santo. Havia um outro propósito nisso – Deus desejava levantá-los de qualquer maneira quando se mostravam preguiçosos (pois sabemos que nosso interesse na santidade é sempre frio, a não ser quando somos espicaçados). Deus, portanto, usou esses estímulos para fazer com que os judeus o adorassem com zelo mais fervoroso” (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,v. 1, (Dn 3.2-7), p. 193-194).

[16]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 3, (Sl 81.2), p. 278. Do mesmo modo, ver: John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 2, (Ex 15.20), p. 262-263.

[17]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 92.3), p. 461-462. Do mesmo modo, conforme já indicamos, ver também: João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.2-7), p. 193-194.

[18]Veja-se: João Calvino,Exposição de Hebreus,São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 10.5), p. 257.

[19] João Calvino. “Sermões sobre 2 Samuel”. In: Timothy George, org. Reformation Commentary on Scripture. Old Testament V: 1-2 Samuel, 1-2 Kings, 1-2 Chronicles, InterVarsity Press: Downers Grove, IL, 2016, p. 167. Veja-se também, a página 170. (Devo essa referência ao Rev. Mauro Filgueiras Filho em correspondência privada).

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