A Pessoa e Obra do Espírito Santo (358)

6.4.8.5.3. A Unidade vivenciada: um estudo de caso  

A comunhão com o Espírito é ao mesmo tempo uma comunhão com os nossos irmãos. A comunhão do Espírito não é individualista (eu e o Espírito) ou mesmo de “elites sociais”. O Espírito, pela Palavra “quer arrancar-nos da nossa solidão e colocar-nos em comunhão recíproca”, instrui-nos Brunner (1889-1966).[1]         

A comunhão proporcionada pelo Espírito é socializante porque revela que todos nós, sem exceção, somos inteira e absolutamente dependentes da graça de Deus. Em Cristo somos todos conduzidos ao Pai pelo mesmo Espírito (Ef 2.18).

 Lucas descrevendo aspectos da rotina diária da Igreja Primitiva, diz: “E perseveravam na doutrina dos apóstolos” (At 2.42). Observemos primariamente que a Igreja estava bem fundamentada  e perseverava não em qualquer doutrina (Mt 15.9); mas, sim, na doutrina dos apóstolos, que fora recebida de Cristo (At 1.21,22; Gl 1.10-12; 1Co 11.23ss; 15.1-3; 2Pe 1.16-21; 1Jo 1.1-4).

Os apóstolos, por sua vez, estavam alicerçados no próprio Cristo: “Edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo Ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular”(Ef 2.20).

“A palavra dos apóstolos, primeiramente falada e posteriormente escrita, não apenas sustenta e garante a unidade da Igreja, mas também se espalhou por todo o mundo bem como em todas as épocas”, interpreta Bavinck (1854-1921).[2]

A despeito de suas limitações, que logo apareceriam, a Igreja Primitiva desfrutava de uma comunhão íntima, não artificial, gerada pelo Espírito Santo (At 2.42; 4.32/Ef 4.3/Fp 1.3-5). Jesus orou para que houvesse esta comunhão, a qual aponta de forma indicativa para a unidade amorosa do Pai com o Filho, e o amor divino manifesto em Cristo pelo seu povo (Jo 17.20-23).[3] Vejamos agora, algumas manifestações desta unidade e comunhão.

1) Na vida devocional

a) No partir do pão

Na Ceia [temos] uma veemente exortação a viver santamente, e sobretudo a manter a caridade e amor fraternal entre nós. Pois se na Ceia somos feitos membros de Jesus Cristo, sendo incorporados a Ele e a Ele unidos, quem é a nossa cabeça, há razão mais que suficiente para que nos conformemos à sua pureza e inocência e mui especialmente que tenhamos entre nós a caridade e concórdia que deve reinar entre os membros de um mesmo corpo. – João Calvino.[4]

A expressão “partir do pão” (At 2.42) refere-se à Ceia do Senhor (Cf. At 20.7,11). A Igreja participava deste Sacramento[5] lembrando a morte e ressurreição de Cristo, atestando publicamente a sua fé  e esperança no regresso glorioso e triunfante de Cristo, “… até que Ele venha”(1Co 11.26).

          Na Ceia temos uma representação real da unidade da Igreja em Cristo Jesus que deve ser preservada, conforme escreveu Calvino:

Ora, assim Seu corpo aí nos comunica o Senhor que um conosco inteiramente Se faça e nós com Ele. De fato, quando somente um corpo tenha Ele, do qual a todos partícipes nos faz, necessariamente, mercê de participação desta natureza, um só corpo também nós todo nos tornamos. Esta unidade representa-a o pão que no sacramento é exibido, o qual, como se de muitos grãos foi confeccionado, de tal modo entre si misturados que um do outro se não possa distinguir, nesta maneira convém também nós de tão grande concordância de espíritos termos sido unidos e ligados, que algo se não interponha de dissentimento ou divisão.[6]

           Em uma antiga liturgia da Igreja Reformada Holandesa usada na Ceia do Senhor, apontando para a unidade que existe entre Cristo e a sua Igreja e, entre os cristãos, os fiéis confessavam na Ceia:

Assim como, de muitos grãos, uma farinha é moída e um pão é assado e como, de muitas uvas, espremidas juntas, surge um só vinho, com todas as uvas misturadas juntamente, assim também todos aqueles que, pela fé, são incorporados em Cristo, devem ser, juntos, um só corpo.[7]

          “A Ceia devia ser distribuída em reunião pública da Igreja, para nos ensinar sobre a comunhão em virtude da qual nos unimos todos em Jesus Cristo”, ensina Calvino.[8]

          Na Ceia o Senhor se reúne pactualmente[9] com a sua igreja e sua igreja, como povo eleito e redimido, se reúne com o seu Senhor (Ap 3.20). Nesta reunião revelamos a nossa irmandade sob o mesmo Senhor.

          A Santa Ceia, refletindo a nossa realidade em Cristo, ilustra e reforça a quebra de barreiras sociais, culturais, raciais, políticas e econômicas. Todos estamos unidos na mesma fé, comendo do mesmo pão e bebendo do mesmo vinho, que simbolizam o sacrifício de Cristo por nós. Esta comunhão é propiciada por Cristo que nos amou e se entregou por nós (Gl 2.20). Participamos do símbolo porque temos a essência em nosso coração transformado.

          Paulo desenvolve esta ideia em outros lugares:

16 Porventura, o cálice da bênção que abençoamos não é a comunhão (koinwni/a) do sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão (koinwni/a) do corpo de Cristo? 17 Porque nós, embora muitos, somos unicamente um pão, um só corpo; porque todos participamos do único pão. (1Co 10.16-17).

Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito. (1Co 12.13).

          Calvino, comentando sobre aquele que se ausenta da Ceia, perdendo o privilégio de participar da mesma, conclui: “…. porque ao fazê-lo se priva da comunhão da Igreja, na qual reside todo nosso bem”.[10]

Maringá, 02 de dezembro de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Emil Brunner, Nossa Fé,2. ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1970, p. 105.

[2]Herman Bavinck, Our Reasonable Faith,4. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1984, p. 535.

[3] 20 Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra; 21 a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste. 22 Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado, para que sejam um, como nós o somos; 23 eu neles, e tu em mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste, como também amaste a mim” (Jo 17.20-23).

[4]Juan Calvino, Breve Tratado Sobre La Santa Cena:In: Tratados Breves,Buenos Aires; México: La Aurora; Casa Unida de Publicaciones, 1959, p. 19.Em outro lugar: “Grande fruto, porém, de confiança e satisfação podem deste sacramento coligir as almas pias, porque têm nele o testemunho de havermo-nos unido com Cristo em um só corpo, de tal sorte que tudo quanto é dele nosso seja lícito chamar” (João Calvino, As Institutas,IV.17.2).

[5] A palavra “sacramento” não ocorre nas Escrituras; ela vem do latim “Sacramentum”, que, na Vulgata, traduziu o grego musth/rion (“mistério”).(Vejam-se: Ef 1.9; 3.3,9; 5.32; Cl 1.27; 1Tm 3.16; Ap 1.20; 17.7). A palavra “Sacramentum”, em si, significava primariamente um depósito financeiro feito em juízo entre as partes litigantes; posteriormente, passou a significar aquilo que era separado como santo, ou o juramento que os soldados prestavam ao seu comandante, envolvendo as obrigações decorrentes deste compromisso. Assim, a palavra avançou do laço religioso para o sentido jurídico, designando uma iniciação ao serviço militar confirmada por meio de um juramento de fidelidade. Tornou-se clássica a definição pioneira de Agostinho (354-430) de sacramento como sendo a “palavra visível” (Agostinho, On The Gospel of St. John: In: Philip Schaff, ed. Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, 2. ed. (First series), Peabody, Massachusetts:Hendrickson Publishers, 1995, v. 7, Tractate LXXX.3, p. 344b) e um sinal visível de uma graça invisível. (Agostinho, As Catequesis,XXVI.50; Cartas, 105.III,12. Apud J. Calvino, As Institutas,IV.14.1).

            Na Escolástica predominou o conceito de sacramento como a “Palavra visível de Deus”, distinguindo-a, mas não a separando da Palavra audível de Deus, ou seja, da Escritura Sagrada. (Cf. Sacramentum: In: Richard A. Müller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms,4. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993, p. 267).

            Admiro a precisão da explicação da Confissão Belga (1561), Artigo 33, quando falando dos sacramentos, diz que os seus elementos “são signos visíveis e selos de algo interno e invisível, por meio dos quais Deus opera em nós o poder do Espírito. Assim, pois, os sinais não são vãos nem vazios, para enganar-nos; porque Jesus Cristo é sua verdade, sem o qual eles não seriam absolutamente nada” (grifos meus).      O Catecismo Menor de Westminster, define: “Um sacramento é uma santa ordenança, instituída por Cristo, na qual, por sinais sensíveis, Cristo e as bênçãos do novo pacto são representados, selados e aplicados aos crentes” (Perg. 92).

[6]João Calvino, As Institutas,IV.17.38.

[7]Apud Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Espírito Santo, igreja e nova criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 587.

[8]João Calvino, As Institutas, (2006), IV.18.7. “Além disso, nos exorta a abraçarmo-nos mutuamente em uma unidade tal como a que une e liga os membros de um mesmo corpo. Nenhum incentivo mais forte ou agudo poderia ser dado para mover e incitar entre nós uma caridade mútua do que o convite de Cristo, ao dar-se a nós, a não apenas seguir seu exemplo, dando-nos e entregando-nos mutuamente uns aos outros, mas porque ele se faz comum a todos, ele também nos faz um em si mesmo” (João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003,Cap. 29, p. 77).

[9]Veja-se: James Bannerman, A Igreja de Cristo: Um tratado sobre a natureza, poderes, ordenanças, disciplina e governo da igreja cristã, (v. 1 e 2), Recife, PE.: Editora Os Puritanos, 2014, p. 605.

[10] Juan Calvino, Breve Tratado Sobre La Santa Cena: In: Tratados Breves, Buenos Aires; México: La Aurora; Casa Unida de Publicaciones, 1959, p. 28.

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