A Pessoa e Obra do Espírito Santo (345)

4) Senso de privilégio e responsabilidade: Serviço ao Senhor (Continuação)

Pedro exorta aos demais presbíteros a pastorearem não como conquistadores, senhores absolutos, mas, que a sua autoridade fosse decorrente do seu testemunho como modelos do rebanho:

Pastoreai o rebanho de Deus que há entre vós, não por constrangimento, mas espontaneamente, como Deus quer; nem por sórdida ganância, mas de boa vontade; 3 nem como dominadores (karakurieu/w) dos que vos foram confiados, antes, tornando-vos modelos (tu/poj) (= padrão, exemplo) do rebanho (1Pe 5.2-3).

            Pedro emprega duas palavras antagônicas, estabelecendo o contraste, dizendo que o pastorado deve ser espontaneamente (e(kousi/wj = intencionalmente, deliberadamente. *1Pe 5.2; Hb 10.26), não por constrangimento (a)nagkastw=j = forçadamente, compulsoriamente. *1Pe 5.2), como se fosse um fardo, algo aflitivo.[1]

            Comentando outra passagem bíblica, Calvino escreve:

O Senhor espera que seus servos sejam solícitos e prazerosos em obedecê-lo, em demonstrar alegria, agindo sem qualquer hesitação. Resumindo, Paulo quer dizer que a única maneira para se fazer justiça à sua vocação seria desempenhando sua função com um coração voluntário e de forma solícita.[2]

            Contudo, isto não indica ausência de responsabilidade, nem negligência. ***Conscientes do nosso chamado, devemos aceitar com alegria o ônus do nosso ofício (Ver: 1Co 9.16,17; Jd 3),[3] sem, contudo, querer exercer um domínio senhorial (katakurieu/w = subjugar *Mt 20.25; Mc 10.42; At 19.16; 1Pe 5.3)[4] que seria prejudicial à igreja (1Pe 5.3), mas nos tornando modelo (tu/poj = padrão) (1Pe 5.3/Fp 3.17; 1Ts 1.7; 2Ts 3.9; 1Tm 4.12; Tt 2.7).

            Devemos ter sempre consciência de que estamos servindo a Deus por meio do rebanho que pertence a Ele – comprado com o seu próprio sangue –, e, foi Ele mesmo quem nos confiou o seu cuidado (At 20.28; 1Pe 5.2-4).

            O nosso Sumo Pastor é quem por sua graça nos recompensará: “Ora, logo que o Supremo Pastor se manifestar, recebereis a imarcescível coroa da glória” (1Pe 5.4).

            Nesse afã, a humildade é extremamente necessária mesmo em meio às provações: “Servindo ao Senhor com toda a humildade (tapeinofrosu/nh), lágrimas e provações que, pelas ciladas dos judeus, me sobrevieram” (At 20.19).

            Aqui vemos mais um ingrediente totalmente estranho ao mundo antigo. A palavra (tapeino/j) tinha originalmente, no mundo pagão, o sentido depreciativo de “estar em baixo”, indicando de modo figurado “socialmente baixo”, “pobre”, “de pouca influência social”, o escravo que assumiu uma atitude de submissão bajulante, lisonjeador etc. Obviamente, humildade não era vista como uma virtude.[5] Do mesmo modo, o composto tapeinofrosu/nh apresenta sempre uma conotação depreciativa.[6]

            Portanto, para o pensamento grego, a humildade estava longe de ser considerada uma virtude. “Nos dias anteriores a Cristo a humildade sempre foi considerada como algo baixo, rasteiro, servil e não nobre. E, sem dúvida, o cristianismo a colocou justamente em primeiro plano entre todas as virtudes cristãs; é de fato, a virtude da qual dependem e provêm todas as demais virtudes”, interpreta Barclay (1907-1978).[7] A humildade é um termo alcunhado pelo Cristianismo, concedendo-lhe um novo significado.

            Isso é fácil de entender, se considerarmos que enquanto os gregos tinham como centro de gravidade o homem, na teologia bíblica o centro de todo o significado da existência está em Deus. Portanto, na concepção grega a modéstia era considerada coisa vergonhosa, devendo ser evitada. Já no pensamento bíblico, as palavras relacionadas à humildade descrevem “aqueles eventos que levam o homem a ter um relacionamento certo com Deus e com seu próximo”.[8]

            A ideia aqui expressa, é de reconhecimento da própria fraqueza e do poder sustentador de Deus. A humildade cristã que é mãe das demais virtudes é produzida pela contemplação da majestade de Deus e, posteriormente, por uma visão adequadamente real do que somos.

Maringá, 14 de novembro de 2021

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] “Grande prudência é requerida daqueles que têm a incumbência da segurança de todos; e grande diligência, daqueles que têm o dever de manter vigilância, dia e noite, para a preservação de toda a comunidade” (João Calvino, Exposição de Romanos,(Rm 12.8), p. 434).

[2]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 9.17), p. 278.

[3]Nestes textos, aparecem a palavra a)na/gkh que é da mesma raiz de a)nagkastw=j.

[4]A palavra apresenta a ideia de um domínio estrangeiro imposto com o objetivo de auferir benefícios para si. (Vejam-se: W. Foerster, Katakurieu/w: In: G. Kittel, ed.,Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 3, 1098; H. Bietenhard, Senhor: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 4, p. 431.

[5]Ver mais detalhes em: H.-H. Esser, Humildade: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 2, p. 386; W. Grundmann, Tapeino/j: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds.Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 8, p. 1-5 (especialmente).

[6]Tapeinofrosu/nh (*At 20.19; Ef 4.2; Fp 2.3; Cl 2.18,23; 3.12; 1Pe 5.5). Ela é a composição de duas palavras: tapeino/j (*Mt 11.29; Lc 1.52; Rm 12.16; 2Co 7.6; 10.1; Tg 1.9; 4.6; 1Pe 5.5), que tem o sentido: a) Literal de “aplanar”, “nivelar” (Lc 3.5 (tapeino/w) (Is 40.4); b) Figurado de “humilde” (Mt 11.29) e frh/n, “pensamento”, “compreensão”, “juízo” (*1Co 14.20). Assim, tapeinofrosu/nh significa “modéstia de mente”, indicando a atitude mental despretensiosa, caracterizando-se pela modéstia. Na construção do texto, tapeinofrosu/nh apresentava sempre o sentido depreciativo de “pensar pobremente”, “ter uma mente servil” etc. (* At 20.19; Ef 4.2; Fp 2.3; Cl 2.18,23; 3.12; 1Pe 5.5). Quanto à humildade de Paulo, Vejam-se: 2Co 10.1; 11.7; 1Ts 2.6. (Ver: H.-H. Esser, Humildade: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 2, p. 386-391).

[7]William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado,Buenos Aires: La Aurora, 1974, v. 10, (Ef 4.1-3), p. 142.

[8] H.-H. Esser, Humildade: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,v. 2, p. 387.

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