A Pessoa e Obra do Espírito Santo (32)

6.1.5. O Espírito, a Reforma, a autoridade e a interpretação bíblica (continuação)

Autoridade relativa de quem prega

            A Reforma não inventou a pregação, contudo, a colocou no centro do culto e, esforçou-se por falar na língua nativa de suas congregações e, aos poucos, procurou preparar bem os futuros pregadores, crendo sempre na autoridade da Palavra e na total dependência do Espírito Santo.[1]

            Quando um jovem pregador que, desanimado reclamava que não conseguia fazer sermões mais longos, achava que teria sido melhor seguir sua antiga profissão, Lutero aconselhou:

Tenha em vista apenas a honra de Deus e não os aplausos. Ore para que Deus lhe dê boca [para falar] e ouvidos à sua audiência. Posso lhe dizer que pregar não é obra de homens. Embora  eu já seja velho [ele estava com 48 anos de idade] e experiente, sinto medo toda as vezes que preciso pregar. (…) Por isso, ore a Deus e deixe todo o resto em suas mãos.[2]

            Algo que  chama a atenção na teologia de Calvino, expressa em sua ampla e profícua obra composta por sermões, cartas, comentários, tratados e nas Institutas, é o  apego dele às Escrituras. Ele amava a Bíblia. As Escrituras não constituíam para ele um livro qualquer, sem relevância,  muito menos a colocava no mesmo nível de outras obras que ele mesmo apreciava. Não. A Escritura é um livro único e singular. Tem-se ali a Palavra de Deus para o homem em todas as épocas e para todas as suas necessidades.

   Nas Escrituras, Calvino aprendeu sobre a soberania de Deus.  Ele aprendeu que o Senhor é sobre todas as coisas. A Escritura é o cetro de Deus por meio do qual ele governa e rege a Igreja. Surge, daí, a necessidade  de se ler, meditar, ensinar e pregá-la de forma fiel, perseverante e sistemática. É por meio da Palavra que se é  instruído, corrigido e governado. Ela deve ser o  manual de vida e culto do cristão. A piedade começa pela instrução que  é fornecida por meio da Escritura. “A piedade está sempre fundamentada no conhecimento do verdadeiro Deus; e isso requer ensino”.[3]

            A pregação é o meio estabelecido por Deus para conduzir o seu povo, portanto, a responsabilidade da igreja enquanto mensageira e ouvinte: “Devemos entender que Jesus Cristo deseja governar sua igreja mediante a pregação de sua Palavra, à qual nós devemos dar toda devida reverência”.[4]

            Já nos primeiros meses de sua estada em Genebra (1536), Calvino lamenta a existência de tão poucos ministros para cuidarem da igreja do Senhor.  Na ocasião em que esteve em  Lausanne em companhia de Pierre Viret (1511-1571) e Guilherme Farel (1489-1565), tendo participando do Debate de Lausanne, iniciado no dia 2 de outubro, escreve ao seu amigo Francis Daniel no dia 13 de outubro de 1536:

Se os ventres preguiçosos que estão com você, que gorjeiam juntos tão docemente à sombra, fossem tão dispostos quanto são faladores, correriam juntamente para cá para tomarem parte do labor para si mesmos, visto que há tão poucos de nós. Quase não dá para acreditar no número tão pequeno de ministros, comparado ao tão grande número de igrejas que carecem de pastores. Como desejo, ao ver a extrema necessidade da igreja, que, embora sejam poucos em número, houvesse ao menos entre vocês alguns homens de coração reto que pudessem ser induzidos a ajudar! Que o Senhor o guarde.[5]

Devido à gravidade da mensagem do Evangelho, e a nobreza da tarefa que temos,  os pastores devem ensinar a Palavra com decoro: “Mantenhamos bem nitidamente conosco que, se os atores no palco observam o decoro, o mesmo não deve ser negligenciado pelos pastores em sua sublime posição”.[6] Do mesmo modo, em total dependência do Espírito: “O Senhor não quer que exerçam [ministros] seu ofício com tibieza e langor, senão que avancem com todo vigor, confiando na eficácia do Espírito”.[7]

            Se, como vimos, o Espírito não pode ser separado da Palavra, da mesma forma, a pregação também não: “O ‘Espírito’ está unido com a Palavra, porque sem a eficácia do Espírito, a pregação do Evangelho de nada adiantará, mas permanecerá estéril”.[8]

            Em 1546, no segundo prefácio à tradução da Bíblia feita pelo primo dele Pierre Olivétan (1506-1538), escreveu:

[A Escritura] é o mais importante e precioso bem de que dispomos nesse mundo, uma vez que ela é a chave que nos abre o reino de Deus e nele nos introduz para que saibamos qual o Deus que devemos adorar e para quê Ele nos chama; (ela) é o caminho certo que nos conduz de tal modo que não vaguemos errantes, de lá para cá, durante todo o tempo de nossa vida; é a norma verdadeira para que possamos discernir entre o bem e o mal e nos exercitar no correto serviço de Deus, para que não ajamos irrefletidamente, indo atrás de mesquinharias de nenhum valor e, por vezes, buscar nossa devoção em coisas que Deus condena e reprova como sendo maléficas.[9]

            Calvino acentuou a responsabilidade do ministro: Deus se dignou em consagrá-los a si mesmo “as bocas e línguas dos homens, para que neles faça ressoar sua própria voz”.[10]  Assim sendo, os pastores não estão a seu próprio serviço, mas de Cristo. Eles não buscam discípulos para si mesmos, mas para Jesus Cristo:

A fé não admite glorificação senão exclusivamente em Cristo. Segue-se que aqueles que exaltam excessivamente a homens, os privam de sua genuína grandeza. Pois a coisa mais importante de todas é que eles são ministros da fé, ou seja: conquistam seguidores, sim, mas não para eles mesmos, e, sim, para Cristo.[11]

A esfera da autoridade do ministro é derivada da Palavra:

A primeira regra do ministro é não tentar fazer coisa alguma sem estar baseado nalgum mandamento.[12]

A Escritura é a fonte de toda a sabedoria, e os pastores terão de extrair dela tudo o que eles expõem diante do seu rebanho.[13]

Há uma regra prescrita para todos os servos de Deus: não tragam suas próprias invenções, mas simplesmente entreguem, como que de mão a mão, o que receberam de Deus.[14]

Porque, se acompanharmos a todos em ordem, não acharemos que foram dotados de qualquer autoridade de ensinar ou responder, a não ser no Nome e pela Palavra do Senhor. Ora, onde são chamados para o ofício, ao mesmo tempo se lhes ordena que algo não tragam de si próprios, antes falem pela boca do Senhor. Nem ele mesmo os põe diante do público, para que sejam ouvidos pelo povo, antes que lhes haja preceituado o que devam falar, para que nada falem senão sua Palavra.[15]

            O segredo dessa fidelidade está nesse princípio: “Todos os verdadeiros pastores da Igreja devem ser discípulos, para que nada ensinem senão o que houver recebido”.[16] E mais. Eles devem crer no que ensinam:

Seria mera tagarelice, ou uma profanção da Palavra de Deus, caso alguém subisse a um púlpito para falar como um anjo; mas, simultaneamente, não estivesse movido no coração nem persuadido daquilo que diz. Ser-lhe-ia melhor ser afogado cem vezes do que dar o mais excelente testemunho da salvação e da verdade de Deus em todo lugar e, ao mesmo tempo, não estar convencido em si mesmo do que prega.[17]

            Portanto, todo o ofício do ministro deve estar intimamente conectado com a Palavra:

Porque devemos ter como coisa resolvida que todo o ofício deles se limita à administração da Palavra de Deus, toda a sua sabedoria consiste somente no conhecimento dessa Palavra, e toda a sua eloquência ou oratória se restringe à pregação da mesma. Se se afastarem dessa norma, serão tolos em seus sentidos, gagos em seu falar, traiçoeiros e infiéis em seu ofício, sejam eles profetas, ou bispos, ou mestres, ou pessoas estabelecidas em dignidade mais alta.[18] 

Maringá, 29 de outubro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]“A pregação externa da Palavra é por si só infrutífera, a não ser que ela fira mortalmente os réprobos, de modo tal que os faça indesculpáveis diante de Deus. Mas quando a graça secreta do Espírito vivifica [a mente dos réprobos], todos os sentidos inevitavelmente serão afetados de tal maneira que a pessoa se sente preparada a ir aonde quer que Deus a chame. Devemos, pois, orar para que Cristo derrame em nós o mesmo poder do evangelho” (João Calvino, O evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.43), p. 79). “A pregação é o instrumento da fé, por isso o Espírito Santo torna a pregação eficaz” (João Calvino, Efésios,  São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 1.13), p. 36). É muito esclarecedora a obra de George: Timothy George, Lendo as Escrituras com os reformadores: como a Bíblia assumiu o papel central na Reforma religiosa do século XVI, São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 181-201.

[2] Citado em: Roland H. Bainton, Cativo à Palavra: a vida de Martinho Lutero, São Paulo: /vida Nova, 2017, p. 353.

[3]João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn  3.28), p. 225. “Não existe piedade sem devida instrução” (John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 19/1, (At 18.22), p. 198).

[4]João Calvino, Beatitudes; sermões sobre as bem-aventuranças, São Paulo: Fonte Editorial, 2008, p. 77.

[5]João Calvino, Cartas de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 30.

[6]João Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 5.1), p. 129. Do mesmo modo: Juan Calvino, Autoridad y Reverencia que Debemos a la Palabra de Dios: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, p. 203.

[7]João Calvino, As Pastorais,  São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 1.7), p. 204.

[8]John Calvin, Commentary on the Book of the Prophet Isaiah,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, (Calvin’s Commentaries), 1996,v. 8/4, (Is 59.21), p. 271.

[9]In: Eduardo Galasso Faria, ed. João Calvino: Textos Escolhidos, São Paulo: Pendão Real, 2008, p. 34

[10] João Calvino, As Institutas, IV.1.5.

[11]J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 3.5), p. 101-102.

[12] João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, v. 4, (IV.13), p. 52.

[13] João Calvino, As Pastorais,(1Tm 4.13), p. 123.

[14]John Calvin, Commentaries on the Book of the Prophet Jeremiah and Lamentations, Grand Rapids, MI.: Baker, 1996, (Calvin’s Commentaries, 9/1), (Jr 1.9-10), p. 43.

[15]João Calvino, As Institutas, 2006, IV.8.2.

[16]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 3, (Ex 31.18), p. 328.

[17]João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 129-130.

[18]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, v. 4 (IV.15), p. 125.

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