A Pessoa e Obra do Espírito Santo (27)

6.1.5. O Espírito, a Reforma, a autoridade e a interpretação bíblica

Sola Scriptura

            Retornando ao nosso ponto, observamos que a questão da autoridade e inerrância bíblica não era  assunto de debate entre os principais reformadores, já que eles criam como os diversos Pais da Igreja haviam escrito,[1] e também, esse era ponto pacífico na cristandade[2] O que por certo, foi enfatizado pela Reforma, foi a suficiência das Escrituras.

            Isso explica o Sola Scriptura, tendo a bíblia como a única autoridade infalível para dirigir a igreja em todas as áreas e em todos os tempos.[3] Enquanto os demais documentos da cristandade têm um valor relativo, somente a Palavra é absoluta para a igreja.[4]

            O Sola Scriptura foi considerado pelos reformadores como o princípio formal que dá substância a tudo o mais.Portanto, a tradição nunca foi rejeitada pelo simples fato de ser tradição. Na própria Escritura encontramos ênfase e crítica à tradição (para/dosij) (2Ts 2.15).[5] A questão básica é: a que tradição estamos nos referindo?.[6]

            Sproul (1939-2017) pontua bem a posição da Reforma:  “Lutero e os reformadores não queriam dizer por Sola Scriptura que a Bíblia é a única autoridade da igreja. Pelo contrário, queriam dizer que a Bíblia é a única autoridade infalível dentro da Igreja”.[7]

            Muller está certo ao declarar:

É inteiramente anacrônico ver o sola Scriptura de Lutero e seus contemporâneos como uma declaração de que toda a teologia deva ser construída a partir do nada, sem referência à tradição interpretativa da Igreja, unicamente pela confrontação isolada do exegeta ao texto puro.[8]

            De fato, a compreensão equivocada do Sola Scriptura como uma declaração de fé explícita ou implícita de que não precisamos estudar, além das Escrituras,  a tradição e as diversas contribuições históricas e teológicas surgidas na história, seria uma negação eloquente do princípio da Reforma. Certamente quem alega com júbilo só conhecer as Escrituras,[9] ignora o espírito da Reforma[10] e, na realidade, não  conhece as Escrituras e, de fato, não entendeu o seu propósito.

            No próximo post continuaremos falando sobre esse ponto.

Maringá, 22 de outubro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Em estudo bem documentado, conclui Kelly (1909-1997): “É desnecessário dizer que os pais consideravam toda a Bíblia inspirada. Não era uma coleção de segmentos díspares, alguns de origem divina  e outros de elaboração meramente humana. (…) O ponto de vista deles era que as Escrituras não apenas estavam livres de erros, como também não continham nada supérfluo” (JN.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: origem e desenvolvimento,São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 45). Veja-se: Nathan Busenitz, O fundamento e a coluna da fé: In: John F. MacArthur, org.,  A Palavra Inerrante, São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 117-135.

[2] “Era tido por certo, por todos os estudiosos da Escritura na Idade Média, que o texto da Bíblia era  literal e diretamente inspirado. A imagem de um evangelista se sentando para escrever com o Espírito Santo na forma de uma pomba com o bico em sua orelha é um lugar-comum iconográfico”  (G.R. Evans, The Middle Ages to the Reformation: In: John Rogerson, ed.,  The Oxford illustrated history of the Bible, Oxford: Oxford University Press, 2001, [p. 180-191], p. 188). Vejam-se: Timothy George, Teologia dos Reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 312; Timothy George, Lendo as Escrituras com os reformadores: como a Bíblia assumiu o papel central na Reforma religiosa do século XVI, São Paulo: Cultura Cristã, 2015, 13-14. Veja-se também, de forma ilustrativa a demonstração do princípio da autoridade das Escrituras antes da Reforma e a posição bem documentada de alguns dos reformadores em: Mark D. Thompson, Sola Scriptura: In: Matthew Barrett, ed., Teologia da Reforma, Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2017, p. 129-164.

[3] “A insistência evangélica sobre a autoridade da Escritura reflete a determinação de não permitir que nada fora da herança cristã torne-se norma para o que é verdadeiramente ‘cristão’.” (Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 50).

[4] “Reservamos à Bíblia uma estima e um amor que não temos, no mesmo grau, pela tradição, nem mesmo pelos mais valiosos de seus elementos. Nenhuma Confissão de Fé datando da Reforma ou da época atual pode, da mesma maneira que as Escrituras, elevar-se à pretensão de solicitar o respeito da Igreja.

            “Mas isso não retira nada do fato de que a Igreja escuta e aprecia o testemunho de seus Pais. Então, mesmo que nós não encontremos nele a Palavra de Deus como em Jeremias ou em Paulo, ele tem para nós um significado elevado. Obedecendo ao mandamento ‘honra teu pai e tua mãe’, nós não nos recusaremos a respeitar, seja na pregação, seja na elaboração científica da dogmática, as afirmações de nossos Pais. Diferentemente das Escrituras, as Confissões não têm autoridade que obrigue, mas devemos, todavia, levá-las seriamente em consideração e lhes atribuir uma autoridade relativa” (Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 13).

[5]A tradição oral (para/dosij) (“transmissão”, “entrega”, “tradição”. A palavra é formada de “Para/” (“junto a”, “ao lado de”) & “Di/dwmi” (Conforme o contexto: “dar”, “trazer”, “conceder”, “causar”, “colocar” etc.) consistia basicamente no que Jesus Cristo, os apóstolos e outros servos de Deus ensinavam, transmitiram por meio de seus sermões, orientações e comportamento (1Co 11.2, 23-25; Gl 1.14; 2Ts 2.15; 3.6/Rm 6.17; 16.17; 1Co 15.1-11; Fp 4.9; 1Ts 2.9, 13; 4.11,12). Significava, portanto, uma entrega oral ou escrita. Nestes textos, evidenciam-se que a “tradição” recebida e ensinada amparava-se numa certeza quanto à sua origem divina. Portanto, as “tradições” mencionadas por Paulo distinguem-se daquelas inventadas e transmitidas pelos homens, as quais são recriminadas por Cristo, visto que estes ensinamentos anulavam a Palavra de Deus (Cf. Mt 15.2,3,6; Mc 7.3,5,8,9,13). A para/dosij é rejeitada todas às vezes que entra em choque com a Palavra de Deus (Vejam-se: H.M.F. Buchsel, Para/dosij: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament,Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), v. 2, p. 172-173; G. Hendriksen, 1 y 2 Tesalonicenses, Grand Rapids, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1980, p. 217 e 230; I.H. Marshall, I e II Tessalonicenses: Introdução e Comentário, São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1984, p. 245 e 257; W. Popkes, Para/dosij: In: Horst Balz; Gerhard Schneider, eds. Exegetical Dictionary of New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1978-1980, v. 3, p. 21). Portanto, “A questão não é se temos tradições, mas se as nossas tradições estão em conflito com o único padrão absoluto nessas questões: as Escrituras Sagradas” (J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: Michael Horton, ed., Religião de Poder, São Paulo: Editora Cultura Cristã,p. 234). Ridderbos salienta que o conceito de tradição no Novo Testamento, não está associado ao pensamento grego antes, é orientado pela concepção judaica, pela qual “o que confere autoridade à tradição não é o peso dos antepassados ou da escola senão primordialmente o caráter do material dessa tradição….” (Herman N. Ridderbos, Historia de la Salvación y Santa Escritura, Buenos Aires: Editorial Escaton, (1973), p. 39).

[6] Quanto  a uma visão panorâmica dos Pais da Igreja quando ao conceito de tradição, vejam-se: Nathan Busenitz, O fundamento e a coluna da fé: In: John F. MacArthur, org.,  A Palavra Inerrante, São Paulo: Cultura Cristã, 2018, [p. 117-135], p. 131-134.

[7] R. C. Sproul, Sola Scriptura: Crucial ao Evangelicalismo: In: J.M. Boice, ed. O Alicerce da Autoridade Bíblica,São Paulo: Vida Nova, 1982, p. 122. Timothy George coloca a questão nestes termos: “O sola scriptura não pretendia desprezar completamente o valor da tradição da igreja, mas sim subordiná-la à primazia das Escrituras Sagradas. Enquanto a Igreja Romana recorria ao testemunho da igreja a fim de validar a autoridade das Escrituras canônicas, os reformadores protestantes insistiam em que a Bíblia era autolegitimadora, isto é, considerada fidedigna com base em sua própria perspicuidade, comprovada pelo testemunho íntimo do Espírito Santo” (Timothy George, Teologia dos Reformadores,São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 312). A observação de Packer é pertinente como princípio que deve servir de parâmetro: “Dentro dessa abordagem, e com base na percepção comum de que tanto o Espírito de Deus como também o pecado humano estão sempre trabalhando dentro da igreja, espera-se que as tradições cristãs sejam parcialmente certas e parcialmente erradas” (J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: Michael Horton, ed. Religião de Poder, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 234).

[8]Richard A. Muller, Post-Reformation Reformed Dogmatics, v. 2 – Holy Scripture: The cognitive foundation of theology,Grand Rapids: Baker Academic, 2003, p. 63.

[9] Vejam-se exemplos dessa prática citados em:  Timothy George, Lendo as Escrituras com os reformadores: como a Bíblia assumiu o papel central na Reforma religiosa do século XVI, São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p.19-20.

[10] “Os evangélicos têm tido sempre a tendência de ler a Escritura como se fossem os primeiros a fazer isso. Precisamos lembrar que outros já estiveram lá antes de nós, e já leram antes que nós o fizéssemos. Esse processo de receber a revelação escritural é ‘tradição’ – não uma fonte de revelação somada à Escritura, e sim um modo particular de se entender a Bíblia que a igreja cristã tem reconhecido como responsável e confiável” (Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 81).

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