A Pessoa e Obra do Espírito Santo (181)

 6.3.5. Arrependimento para a vida (Continuação)

Como vimos, o arrependimento e a fé são passos iniciais, inseparáveis e complementares[1] da vida cristã como resposta ao chamado divino. No entanto, ambos devem acompanhar a nossa vida. Devemos continuar crendo em Deus em todas as circunstâncias e cultivar, pelo Espírito, uma atitude de arrependimento pelas nossas falhas.[2] “O espírito quebrantado e o coração contrito são as marcas permanentes da alma crente”, resume Murray (1898-1974).[3]

          Isso indica o fato de que somos pecadores e, ainda que não mais dominados pelo pecado, continuamos mantendo esta luta em nosso coração. As nossas quedas seguidas de um arrependimento sincero, nos envergonham porque percebemos o quão distantes estamos do alvo proposto por Deus para nós. Como temos enfatizado, o arrependimento pleno é um ideal da vida cristã que jamais será concretizado neste estado de existência.

          Olyott escreve sobre isso com a sua costumeira sensibilidade:

Arrependimento é ter vergonha de quem você é. Você faz o que você faz porque você é quem você é. E o que você é, é o que Deus diz que você é: um pecador! O evangelho é que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar pecadores! E sem esse sentido claro de pecado, você não pode ser salvo.[4]

          O famoso pregador londrino, Lloyd-Jones (1899-1981), na sua juventude tinha como pastor um homem que, conforme nos conta o seu principal biógrafo, Iain Murray, enchia os seus sermões “com muitas anedotas e ilustrações. Sensação e emoção eram o que ele visava alcançar”.

          Mais tarde, Lloyd-Jones rememorando este período, testificou com certa tristeza:

O que eu precisava era de pregação que me convencesse de pecado e me fizesse enxergar a minha necessidade, que me levasse ao arrependimento e me dissesse algo sobre regeneração. Mas eu nunca ouvi isso. A pregação que tínhamos era sempre baseada na suposição de que todos nós éramos cristãos, que não estaríamos ali na congregação a não ser que fôssemos cristãos.[5]

          Lloyd-Jones está correto.

Pecado, disciplina amorosa e arrependimento

          O pecado sempre traz tristeza a todos, cedo ou tarde. A justiça de Deus quando aplicada em nosso coração, produz tristeza. Mas, como vimos, não termina dessa forma, antes produz arrependimento.

          Destaquemos alguns pontos sobre a necessidade de arrependimento por parte dos crentes quando pecam.

          Davi sofreu amargamente as consequências de seu adultério com Bate-Seba e o planejamento da morte de seu marido Urias. Embora ele não tivesse matado com suas próprias mãos o seu leal soldado, as suas mãos estavam manchadas do sangue de Urias.

No salmo 32 escreve: “Enquanto calei os meus pecados, envelheceram (hl’B’) (balah)[6] os meus ossos pelos meus constantes gemidos (hg”a’v.) (sheagah)[7] todo o dia” (Sl 32.3).

          Davi só encontrou alívio quando declarou diante de Deus o seu pecado. Ele não mais tentou escondê-lo ou amenizá-lo. Não há eufemismos em nossa confissão sincera. Davi pinta com cores reais as suas faltas:

Confessei-te ([d;y”) (yada) o meu pecado (hf)f+Ah) (hatã’â)[8] e a minha iniquidade (}oWf() (‘ãwõn)[9] não mais ocultei (כּסה) (kâsâh).[10] Disse: confessarei (hd’y)(yadah) ao SENHOR as minhas transgressões ((a$ep) (pesha’);[11] e tu perdoaste a iniquidade (}oWf() (‘ãwõn) do meu pecado (hf)f+Ah) (hatã’â) (Sl 32.5).

          No salmo 51, no mesmo contexto, escrevera anteriormente: “Pois eu conheço ([d;y”) (yada) as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim” (Sl 51.3).

          Da mesma forma no salmo 38:    “Confesso (נגד) (nâgad) [12] a minha iniquidade (}oWf() (‘ãwõn); suporto tristeza por causa do meu pecado” (Sl 38.18).

É muito natural o homem buscar justificativa para os seus atos iníquos. Há um processo de racionalização malévolo por meio do qual elaboramos teorias por vezes sofisticadas que pelo menos para nós justificam os nossos atos. Como isso nem sempre é suficiente, procuramos também persuadir os outros da integridade e necessidade de nossos atos pecaminosos que, neste caso, não são apresentados como tais, antes, como necessários, ousados e inteligentes.

A aparente tranquilidade de Davi durante os doze meses que o separam de seus atos pecaminosos e a advertência do profeta Natã soa-me como algo estranho. De alguma forma ele conseguiu equacionar a culpa de seu pecado em sua mente e coração durante aquele período. Entregando-se, como diz Calvino, a uma profunda letargia espiritual.[13]  Todavia, a Palavra de Deus é eficaz no seu propósito de mostrar a nossa infração e nos restaurar à comunhão com Deus.

Maringá, 09 de maio de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] “O arrependimento é fruto da fé, que é, ela própria, fruto da regeneração. Contudo, na vida real, o arrependimento é inseparável da fé, sendo o aspecto negativo (a fé é o aspecto positivo) de voltar-se para Cristo como Senhor e Salvador. A ideia de que pode haver fé salvadora sem arrependimento, e que uma pessoa pode ser justificada por aceitar Jesus como Salvador, e ao mesmo rejeitá-lo como Senhor, é uma ilusão destrutiva” (J.I. Packer, Teologia Concisa, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 152-153). Vejam-se: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.5), p. 129ss.; A.A. Hoekema, Salvos pela graça, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 129.

[2] Ferguson argumenta de forma simples, porém, objetiva destacando o perigo de entendermos o “arrependimento” apenas como ato único (“emoção inicial”) na vida cristã (Veja-se: Sinclair Ferguson A Graça do Arrependimento. São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2014, p. 46ss.).

[3]John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 130.

[4]Stuart Olyott, Jonas – O Missionário bem-sucedido que fracassou, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2012, p. 58.

[5] Apud Iain H. Murray, A Vida de Martyn Lloyd-Jones 1899-1981: Uma biografia, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2014, p. 56.

[6] Aplica-se à roupa envelhecida (Dt 8.4; 29.5; Js 9.5; Sl 102.26), sandália gasta (Dt 29.5; Js 9.5,13).

[7] A palavra gemido se aplica também: a) ao rugido do leão feroz: “Cessa o bramido (hg”a’v.)(sheagah)do leão e a voz do leão feroz, e os dentes dos leõezinhos se quebram” (Jó 4.10). “O seu rugido (hg”a’v.)(sheagah)é como o do leão; rugem como filhos de leão, e, rosnando, arrebatam a presa, e a levam, e não há quem a livre” (Is 5.29); b) ao rugido dos leõzinhos: “Este, andando entre os leões, veio a ser um leãozinho, e aprendeu a apanhar a presa, e devorou homens. Aprendeu a fazer viúvas e a tornar desertas as cidades deles; ficaram estupefatos a terra e seus habitantes, ao ouvirem o seu rugido (hg”a’v.)(sheagah)(Ez 19.6-7). “Eis o uivo dos pastores, porque a sua glória é destruída! Eis o bramido (hg”a’v.) (sheagah)dos filhos de leões, porque foi destruída a soberba do Jordão!” (Zc 11.3); c) gemido humano, quando, por exemplo, Jó em desespero amaldiçoa o dia do seu nascimento: “Por que em vez do meu pão me vêm gemidos (hg”a’v.) (sheagah), e os meus lamentos se derramam como água?” (Jó 3.24); d) bramido do Messias: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Por que se acham longe de minha salvação as palavras de meu bramido (hg”a’v.)(sheagah)?” (Sl 22.1).

[8](hf)f+Ah) (hatã’â). Pecado consiste no desvio daquilo que é agradável a Deus; errar o alvo, desviar-se da obediência devida a Deus. Esta é a principal palavra usada para descrever o sentido do pecado: errar o alvo ou o caminho. Um erro desqualificante. “A imagem é como saltar para alcançar uma barra e ser desqualificado ou fracassar em realizar isso” (Bruce K. Waltke, James M. Houston e Erika Moore, Os Salmos como adoração cristã: um comentário histórico, São Paulo: Shedd Publicações, 2015, p. 494).

[9] (}oWf()(‘ãwõn). O sentido da palavra é de perverter, distorcer, envergar algo que é reto.    A principal ideia está associada ao ato consciente, frequente e intencional de fazer o que é errado. Quando se aplica à lei significa “cometer uma perversão”, “infringir”. Distorcer o caminho certo. Ao que parece, a culpa é a principal consequência subjetiva deste pecado. (Veja-se: Carl Schultz; Bruce K. Waltke, ‘ãwâ: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1087). Davi (na sequência apresentada no Salmo 32) que primeiramente quebrou a aliança, desviando-se cada vez mais do propósito de Deus, agora ele avança em infringir a Lei, pervertendo-a.

[10] (כּסה) (kâsâh)tem o sentido de “envolver”, “encobrir”, “ocultar”, “submergir” (Sl 78.53); morar (Pv 10.6,11); reter (Pv 10.18). Davi, portanto, expôs a Deus o seu pecado, não mais o abrigou dentro de si.

[11]((a$ep) (pesha’). Significa, transgressão, violação. revolta ou recusa a se submeter a uma legítima autoridade. “Afronta ostensiva dos homens à pessoa de Deus” (Alex Luc, Ps‘ In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 703). É como alguém que ergue o punho contra o padrão estabelecido por Deus. Significa revolta ou recusa a se submeter a uma legítima autoridade. Tem o sentido de rompimento de relacionamento, envolvendo a ideia de abandono de compromissos assumidos, uma quebra intencional de uma norma ou padrão, uma rebelião.

Ainda que esta expressão seja usada amplamente no campo familiar e jurídico, ela se concentra de forma mais intensa na rebelião contra Deus.

“O sentido predominante de pesha’ é o de rebelião contra a Lei e a Aliança de Deus, e, por conseguinte, o termo é um substantivo coletivo que denota a totalidade de iniquidades e um relacionamento fraturado” (G. Herbert Livingston, Pesha’: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1247).

[12] O sentido básico é de “declarar”, “publicar”, “anunciar”, “manifestar, “expor”.

[13] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo:  Vol. 2, p. 421.

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