A Pessoa e Obra do Espírito Santo (180)

6.3.5. Arrependimento para a vida (Continuação)

O arrependimento sincero é uma “concessão”, um presente[1] de Deus. O genuíno arrependimento é-nos propiciado pela bondosa disciplina de Deus: “Porque a tristeza segundo Deus produz arrependimento (meta/noia) para a salvação” (2Co 7.10/2Tm 2.25). “A bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento (meta/noia) (Rm 2.4/At 11.18; Hb 12.17).

O arrependimento distingue-se, assim, do remorso, que é apenas uma tristeza por um ato pecaminoso, em geral, percebido por causa das consequências, ainda que parciais, do seu pecado (Jr 3.7). Esta tristeza (remorso) pelo pecado faz parte do arrependimento, contudo, ela sozinha é insuficiente.[2] O remorso é negativo enquanto o arrependimento se completa positivamente.[3]

Saul, quando percebe a injustiça que cometia contra Davi o perseguindo para matá-lo, chorou amargamente. Seu choro, entretanto, foi de remorso, não de arrependimento, visto que o seu comportamento não mudou de modo permanente:

13 Dos perversos procede a perversidade, diz o provérbio dos antigos; porém a minha mão não está contra ti. 14 Após quem saiu o rei de Israel? A quem persegue? A um cão morto? A uma pulga? 15 Seja o Senhor o meu juiz, e julgue entre mim e ti, e veja, e pleiteie a minha causa, e me faça justiça, e me livre da tua mão. 16 Tendo Davi acabado de falar a Saul todas estas palavras, disse Saul: É isto a tua voz, meu filho Davi? E chorou Saul em voz alta. (1Sm 24.13-16).   

Owen  (1616-1683) argumenta:

Quando um homem corrige o seu pecado somente com argumentos sobre o resultado ou o castigo devido a este, isso é um sinal de que o pecado tem grande domínio sobre a vontade, e que no coração há uma superabundância de malícia (Tiago 1:21). Tal homem não se opõe em nada  à sedução do pecado e à concupiscência no coração, porém teme a vergonha entre os homens ou o inferno de Deus e estaria suficientemente resolvido em seu coração a cometer o pecado não fosse o castigo que o acompanha. Isso é viver na prática do pecado. (…) Aqueles que são de Cristo e que se conduzem na sua obediência dentro de princípios do evangelho têm a morte de Cristo, o amor de Deus, a detestável natureza do pecado, a preciosidade da comunhão com Deus, uma profunda aversão ao pecado como pecado, para se opor contra qualquer sedução do pecado, a todas as obras, esforços, reivindicações da concupiscência que tenham no coração. Assim foi com José.  “Como eu faria isto?”, ele diz, “e pecaria contra meu Senhor”, meu bom e gracioso Deus? [Gn 39:9].[4]

Os casos de Esaú e Judas, por exemplo, refletem uma atitude de remorso, não de arrependimento, conforme resume Michel, dizendo que Judas, em sua atitude, exibe “remorso e não arrependimento. Judas vê que é culpado em sua ação e não suporta seu fardo. O remorso de Judas (Mt 27.3) e de Esaú (Hb 12.17) não tem o poder de vencer a operação destruidora do pecado”.[5]

A graça do arrependimento

          O arrependimento é por si só fruto da graça de Deus; é uma tristeza produzida por Deus em nossos corações. Somente a verdadeira convicção do pecado, resultante da contemplação do Deus santo, pode nos conduzir à consciência de nossa pobreza espiritual e ao choro de arrependimento pelos nossos pecados.

          Os que assim agem serão consolados pelo próprio Deus. Este consolo trará alegria eterna para o seu povo: “Bem-aventurados vós, os que agora chorais, porque haveis de rir” (Lc 6.21).

          Portanto,  “a fé e o arrependimento não devem ser reputados coisas meritórias mediante as quais merecemos o perdão. Pelo contrário, são os meios pelos quais nos apropriamos da graça de Deus”, escreve Morris (1914-2006).[6] Em síntese: “O arrependimento não está no poder do homem”, reafirma Calvino.[7] Por isso, ele é próprio do novo homem.[8] Deste modo, podemos falar como nos Cânones de Dort, “que o homem crê e se arrepende mediante a graça que recebeu”.[9]

          O conceito de arrependimento, envolvendo uma mudança radical na vida do homem é um conceito cristão sem paralelo na literatura grega.[10]

          O arrependimento bíblico consiste em voltar-se total e integralmente para Deus.  Envolve uma atitude de abandono do pecado e uma prática da Palavra de Deus.[11] Esta prática consiste nos “frutos do arrependimento”.

          Paulo, testemunhando diante do rei Agripa a respeito do seu ministério, diz:

19Pelo que ó rei Agripa, não fui desobediente à visão celestial, 20mas anunciei primeiramente aos de Damasco e em Jerusalém, por toda a região da Judéia, e aos gentios, que se arrependessem (metanoe/w) e se convertessem a Deus praticando obras dignas (a)/cioj) de arrependimento (meta/noia).(At 26.19,20. Vejam-se também: At 20.21/Lc 3.8).

          Considerando o nosso progresso espiritual em direção ao modelo definitivo, Jesus Cristo, Calvino (1509-1564) destaca três elementos essenciais no arrependimento os quais devem nos acompanhar em toda vida cristã: “O ensino do arrependimento contém a regra do viver santo; ele demanda negação de nós mesmos, mortificação de nossa carne e meditação sobre a vida celestial”.[12]

Em outro lugar:

Esta restauração, na verdade, não se consuma em um momento, ou em um dia, ou em um ano; antes, através de avanços contínuos, ainda que amiúde de fato lento, Deus destrói em seus eleitos as corrupções da carne, os limpa de sua imundície e a si os consagra por templos, renovando-lhes todos os sentimentos à verdadeira pureza, para que se exercitem no arrependimento toda sua vida e saibam que não há nenhum fim para esta luta senão na morte.[13]

Julgo que aquele que aprendeu a ficar profundamente insatisfeito consigo mesmo aprendeu muito de proveito, não para permanecer estacionado neste lamaçal, sem dar um passo além; antes, pelo contrário, de modo que se apresse para Deus e por ele suspire; para que, enxertado na morte e na vida de Cristo, se aplique ao perpétuo arrependimento.[14]

Maringá, 09 de maio de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] “O arrependimento é um presente do Cristo que subiu ao céu, no seu glorioso ofício de Mediador” (Sinclair B. Ferguson, Arrependimento, Recuperação e Confissão: In: James M. Boice; Benjamin Sasse, orgs. Reforma Hoje, São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 143).

[2] Quanto à confusão feita nas traduções entre arrependimento e remorso, veja a excelente obra de meu antigo mestre, Oadi Salum, Teologia Sistemática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 362-363.  Veja-se também:   D. M.  Lloyd-Jones,  Deus o Espírito Santo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1998, p. 179-180.

[3] Cf. D. M.  Lloyd-Jones,  Deus o Espírito Santo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1998, p. 180.

[4] John Owen, Para vencer o pecado e a tentação,  São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 109.

[5] Otto Michel, In: Metame/lomai: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 4, p. 628.

[6] Leon Morris, Perdão: In: J.D. Douglas, ed. org.O Novo Dicionário da Bíblia,São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 3, p. 1268a.

[7]João Calvino, Exposição de Hebreus,São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 6.6), p. 155.

[8] Cf. Herman Bavinck, Teologia Sistemática,p. 479.

[9]Os Cânones de Dort, São Paulo: Cultura Cristã, (s.d.), III-IV.12.

[10] Cf. J. Goetzmann, Conversão: In: Colin Brown, ed. ger.O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 1, p. 499.

[11]“O arrependimento bíblico, então, não é meramente sentir um remorso que nos deixa onde estamos; é uma inversão radical que nos leva de volta pela estrada de nossas peregrinações pecaminosas, criando em nós uma mentalidade completamente nova. É cair em si espiritualmente (cf. Lc 15.17). A vida não é mais caracterizada pela exigência ‘dá-me’ (Lc 15.12) e sim pelo pedido ‘faze-me’ (Lc 15.19)” (Sinclair B. Ferguson, Arrependimento, Recuperação e Confissão: In: James M. Boice; Benjamin Sasse, orgs. Reforma Hoje, São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 131).

[12] John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (Reprinted), v. 19, (At 20.21), p. 245.

[13] João Calvino, As Institutas, (2006), III.3.9.

[14] João Calvino, As Institutas, (2006), III.3.20.

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