A Pessoa e Obra do Espírito Santo (169)

1) O homem perante Deus 

A doutrina da justificação pela graça mediante a fé é o ponto capital onde se fundamenta a fé cristã e, consequentemente, a nossa relação com Deus.[1] Uma expressão inspirada nos escritos de Lutero, referindo-se à justificação, como “o artigo pelo qual a igreja se sustenta ou cai”, era comumente usada no século XVII por teólogos luteranos e reformados.[2]

          A doutrina da justificação é a “artéria da graça”,[3] pela qual flui os demais privilégios da vida cristã. Devemos deixar claro que o fundamento de nossa justificação não é a fé, mas a justiça de Cristo que é imputada a nós pela fé.[4] Diante da santidade e majestade de Deus quem, em sã consciência, honesta e sensatamente ousaria se considerar justo? E mais: O Deus santo não pode receber nem ter comunhão com um pecador.[5]

          O salmista, já sabendo a resposta, pergunta: “Se observares (rm;v’) (shamar), SENHOR, iniquidades, quem, Senhor, subsistirá?” (Sl 130.3). Ele não se ilude. Sabe que o escrutínio de Deus é perfeito. Quem passaria ileso? Quem pode dizer diante de Deus que não tem pecado?

          Davi suplica: “Não entres em juízo com o teu servo, porque à tua vista não há justo nenhum vivente” (Sl 143.2).

          Elifaz indaga: “Seria, porventura, o mortal justo diante de Deus? Seria, acaso, o homem puro diante do seu Criador? Eis que Deus não confia nos seus servos (anjos)[6] e aos seus anjos atribui imperfeições”[7] (Jó 4.17-18).

          O “observar” (rm;v’) (shamar) de Deus (Sl 130.3), tem o sentido aqui de “observar diligentemente”, “verdadeiramente atentar”, “prestar muita atenção em”; uma rígida e judiciosa observação das faltas com o objetivo de prestar contas, como em Jó: “Se eu pecar, tu me observas (rm;v’) (shamar);[8] e da minha iniquidade não me perdoarás” (Jó 10.14).[9]

          Esta é a situação do homem finito diante do Deus infinito: a sua grandeza e senso de perfeição e de justiça são como nada diante do Deus santo e perfeito. A grandeza de Deus revela a pequenez de nossas perspectivas. Moisés escreve: “Diante de ti puseste as nossas iniquidades e, sob a luz do teu rosto, os nossos pecados ocultos”(Sl 90.8).

          Davi, consciente dos limites do seu próprio escrutínio, escreve: “Quem há que possa discernir (!yBi) (biyn) as próprias faltas (ha’ygIv.) (shegiy’ah)(= erros)? Absolve-me das que me são ocultas” (Sl 19.12). A palavra faltas (ha’ygIv.) (shegiy’ah) está geralmente associada aos pecados cometidos inconscientemente. Daí a dificuldade de discernir tais faltas.

Entretanto, a suposta ignorância não inocenta o infrator. O não ter percebido a indicação de contramão em determinada rua não invalida a possibilidade da multa caso seja flagrado.

          O conhecimento da Palavra dá-nos maior sensibilidade espiritual. Por isso mesmo, temos maior consciência de nossos pecados e, ao mesmo tempo, sabemos das limitações do tribunal de nossa consciência.[10]

          A minha consciência é um elemento importante em meu progresso espiritual, ainda que não seja o tribunal definitivo.[11] No entanto, Deus nos conhece perfeitamente. Ele tem o perfeito discernimento do que somos e pensamos.

          O salmista sabe que é pecador, ainda que por vezes involuntariamente. Tem consciência de que Deus o conhece perfeitamente. No entanto, sabe que o seu Deus além de onisciente, é um Deus santo, cujo padrão é a sua perfeita santidade.

Os nossos pecados sempre são uma afronta à santidade de Deus. Eles precisam ser expiados. Contudo, como fazê-lo adequada e completamente se sou pecador e a minha dívida parece aumentar sempre?

Davi, consciente disso roga o perdão de Deus: Absolve-me (hq;n”) (naqah) (= tornar isento, ficar livre) das que me são ocultas (rt;s’) (cathar) (Sl 19.12). Ele recorre a Deus porque somente ele pode perdoar nossas faltas.[12]

Como então, Deus pode nos considerar justos, sendo ele Santo? Como pode o homem pecador tornar-se justo aos olhos de Deus? Deus diminuiu o seu padrão legal?

Calvino (1509-1564) apresenta a resposta. Faço duas citações mais longas:

Lemos que justificado diante de Deus é aquele que, ao juízo de Deus, não só é considerado justo, mas que também foi aceito em razão de sua justiça, porque, como a iniquidade é abominável à vista de Deus, assim o pecador não pode achar graça a seus olhos, na qualidade de pecador e por quanto tempo for tido como tal. Consequentemente, onde quer que haja pecado, aí também se manifesta a ira e vingança de Deus. Portanto, justificado é aquele que não é tido na conta de pecador, mas de justo, e por esse título se posta firme diante do tribunal de Deus, onde todos os pecadores se prostram abatidos. Da mesma forma, se um inocente acusado for levado perante o tribunal de um juiz imparcial, depois de ser julgado segundo sua inocência, se diz que foi justificado diante do juiz; assim é justificado diante de Deus aquele que, excluído do número dos pecadores, tem a Deus por testemunha e arauto de sua justiça. (…) Será justificado pela fé aquele que, excluído da justiça das obras, apreende pela fé a justiça de Cristo, revestido da qual aparece perante Deus não como pecador, mas, pelo contrário, como justo. Portanto, interpretamos a justificação simplesmente como a aceitação mercê da qual, recebidos à sua graça, Deus nos tem por justos.E dizemos que ela consiste na remissão dos pecados e na imputação da justiça de Cristo.[13]

Daqui se conclui também isto: unicamente pela intercessão da justiça de Cristo é que logramos ser justificados diante de Deus. Isso equivale exatamente se fosse dito que o homem não é inerentemente justo; pelo contrário, visto que a justiça de Cristo se comunica com ele por imputação, o que é digno de acurada consideração. Porque desse modo se desvanece aquela fútil fantasia, segundo a qual o homem é justificado pela fé enquanto por ela recebe o Espírito de Deus, com o qual é feito justo. Isto é tão contrário à doutrina exposta, que jamais poderá estar de acordo com ela.  Ora, sem sombra de dúvida, que quem deve buscar a justiça fora de si mesmo se encontra desnudo de sua própria justiça.  (…) [2Co 5.21]. Vês que nossa justiça não está em nós, mas em Cristo; que entramos na posse desse direito somente porque somos participantes de Cristo, pois que com ele possuímos todas as suas riquezas. (…)  Pois, mercê desse direito, Cristo, o Senhor, compartilha conosco sua justiça, de sorte que, no que concerne ao juízo de Deus, de certa maneira maravilhosa ele transmite seu poder.[14]

          Certamente que não podemos baratear o perdão de Deus. Devemos nos lembrar de que o perdão gratuito de Deus custou o preciso sangue de seu Filho.

          Perdoar significa considerar o devedor como se não houvesse ofendido em nada. Não lhe imputar nenhuma dívida. Após o perdão, o devedor deixou de sê-lo, tornou-se uma pessoa, sem  adjetivos nesse sentido. Tanto a ofensa como o perdão já não contam mais. Com o perdão de Deus o nosso relacionamento com ele é restabelecido. O perdão de Deus, longe de minimizar o pecado e a sua gravidade, antes, realça a misericórdia de Deus.[15]

          A Palavra de Deus nos diz que todos pecaram (Rm 3.23). Por outro lado, temos no Novo Testamento a declaração explícita que vale para todas as épocas. que em Cristo Jesus somos justificados, sendo perdoados de todos os nossos pecados.[16]

          O perdão é um favor de Deus, uma prerrogativa sua, não algo a que temos direito por nossos merecimentos. Daniel, diz: “Ao Senhor, nosso Deus, pertence a  misericórdia e o perdão” (Dn 9.9/Sl 130.4).

          “Deus (…) é rico em perdoar” (Is 55.7). Portanto, “Bem-aventurado o homem a quem o SENHOR não atribui iniquidade e em cujo espírito não há dolo”(Sl 32.2).

          Grider (1921-2006) nos chama a atenção para o fato de que “nenhum livro de religião, a não ser a Bíblia, ensina que Deus perdoa completamente o pecado”.[17]

          No Novo Testamento, Paulo estabelece um contraste entre a “graça” e as “obras”: “E, se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça”(Rm 11.6). “Méritos humanos estão excluídos de todo o plano da salvação”.[18]

          “Deus (…) é rico em perdoar”(Is 55.7). Portanto, “Bem-aventurado o homem a quem o SENHOR não atribui iniquidade e em cujo espírito não há dolo”(Sl 32.2).

          Continuaremos detalhando o assunto no próximo post.

Maringá, 22 de abril de 2021. Rev. Hermisten Maia Pereira da


[1] Veja-se: João Calvino, As Institutas, III.11.1.Turretini diz que ela é “a principal plataforma da religião cristã” (François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 2, p. 757). “A doutrina da justificação pela graça é o âmago da fé cristã” (Franklin Ferreira; Alan Myatt, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 812). “…. é a própria estrutura e o pilar do cristianismo. Um erro sobre a justificação é algo perigoso, como um defeito em uma fundação. A justificação dada por Cristo e a fonte da água da vida” (Thomas Watson, A Fé Cristã, estudos baseados no breve catecismo de Westminster, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 264).

[2]Vejam-se: Alister E. McGrath, Lutero e a Teologia da Cruz, São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 41-42; W. Robert Godfrey, Calvino e o Concílio de Trento: In: Michael Horton, org., Cristo o Senhor: A Reforma e o Senhorio da Salvação,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2000, p. 115. Fazendo eco a esta expressão, mais tarde escreveria Bavinck: “A justificação é a doutrina sobre a qual a igreja fica de pé ou cai. Ou devemos fazer alguma coisa para sermos salvos ou nossa salvação é puramente um dom da graça. Deus não coloca de lado a lei que nos julga adequadamente; somente porque Cristo suportou a ira de Deus nós somos reconhecidos como justos nele” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 180-181).

[3] Devo esta expressão a Kuyper (Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 329).

[4]“A fé não é a base da justificação; se o fosse, a fé tornar-se-ia uma obra meritória. (…) De acordo com Paulo, não é sobre a nossa fé, mas sobre a retidão de Cristo, que a nossa justificação está alicerçada” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus,São José dos Campos, SP. Fiel, 1994, p. 130,131). Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 217ss.; p. 266.

[5]Veja-se: Thomas Watson, A Fé Cristã, estudos baseados no breve catecismo de Westminster, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 266.

[6] Aqui não indica o pecado dos anjos; antes, que Deus realiza as suas próprias tarefas essenciais.

[7]BJ: “Verbera o erro”; ACR: “Atribui loucura”. “O significado da palavra traduzida imperfeições no v. 18b, que ocorre somente aqui, é totalmente desconhecido, e tem dado origem a muitas conjecturas e emendas” (Francis I. Anderson, Jó: Introdução e Comentário,São Paulo: Mundo Cristão; Vida Nova, 1984, (Jó 4.18), p. 112).

[8]Vejam-se: Hermann J. Austel, Shama’: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1585-1587; Keith N. Schoville, Smr: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 4, p. 181-183.

[9] Do mesmo modo: “Ainda que eu seja justo, a minha boca me condenará; embora seja eu íntegro, ele me terá por culpado” (Jó 9.20). “….observas (rm;v’) (shamar) todos os meus caminhos e traças limites à planta dos meus pés” (Jó 13.27).

[10] “Faríamos bem em relembrar que, fazendo de nosso conhecimento e de nossa consciência miseravelmente imperfeitos e a medida de nossa pecaminosidade, estamos pisando em terreno perigoso” (J.C. Ryle, Santidade, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 1987, p. 23).

[11]“A consciência não é um tribunal celestial, porém é o mais elevado tribunal terreno, pois é o sistema de alerta da alma” (John MacArthur, Certezas que impulsionam um ministério duradouro: In: John Piper; Justin Taylor, eds. Firmes: um chamado à perseverança dos santos, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2010, p. 70).

[12]O verbo está no piel. Neste modo, sempre Deus é o sujeito da ação. (Veja-se: Milton C. Fisher; Bruce K. Waltke, Nãqâ: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 998.

[13] João Calvino, As Institutas, III.11.2.

[14] João Calvino, As Institutas, (2006)III.11.23.

[15] “Eu, eu mesmo, sou o que apago as tuas transgressões por amor de mim, e dos teus pecados não me lembro” (Is 43.25). “Desfaço as tuas transgressões como a névoa, e os teus pecados como a nuvem; torna-te para mim, porque eu te remi” (Is 44.22). “Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que perdoas a iniquidade, e te esqueces da transgressão do restante da tua herança? O Senhor não retém a sua ira para sempre, porque tem prazer na misericórdia. Tornará a ter compaixão de nós; pisará aos pés as nossas iniquidades, e lançará todos os nossos pecados nas profundezas do mar” (Mq 7.18-19). “….Perdoarei as suas iniquidades, e dos seus pecados jamais me lembrarei” (Jr 31.34). (Vejam-se: Is 55.7; Jr 5.1; 33.8; Ez 36.25).

[16] “Se Deus perdoasse o pecado sem contudo ministrar sua justiça, deixaria de ser Deus. A maravilha deste plano é que Deus, ao colocar os nossos pecados sobre Cristo e ao tratar deles punindo-os em Cristo, pode perdoar-nos e ainda ser justo. Ele puniu o pecado, não o esqueceu, não o ignorou” (D.M Lloyd-Jones,Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 1), p. 53).

[17] J.K. Grider, Perdão: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1990, v. 3, p. 136. Esta declaração não entra em conflito com o fato de que os deuses dos povos do Antigo Testamento eram aplacados em sua ira e esta consciência de “perdão” era testemunhada pelos seus adoradores. (Cf. J. Scharbert, Perdão: In: Heinrich Fries, (direção de), Dicionário de Teologia, 2. ed. São Paulo: Loyola, 1987, v. 4, p. 229-230). Contudo, um exemplo explícito de um “deus” declarando o perdão absoluto parece ser estranho à literatura antiga, fora da Bíblia.

[18] William S. Plumer, Psalms,Carlisle: The Banner of Truth Trust, 1978, (Reprinted), (Sl 130.4), p. 1125.


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