A Pessoa e Obra do Espírito Santo (149)

Um estudo de caso: A Academia de Genebra: missão como vocação (Continuação)

          A Academia tornou-se grandemente respeitada em toda a Europa.[1] O grau concedido aos seus alunos era amplamente aceito e considerado em universidades de países protestantes como, por exemplo, na Holanda.

Vemos aqui tipificado de forma eloquente que a missão não era o refúgio dos incompetentes nem a academia o abrigo dos indolentes ministeriais. Não havia, como de fato não há, essa dissociação em essência: missão e erudição, já que “não existe piedade sem devida instrução”.[2] Consequentemente, não há também a dicotomia ontológica entre piedade e ciência, considerando que a “piedade deve ser unida à ciência”.[3]  

O chamado de Deus não é por eliminação, antes, é soberana graça capacitante[4] que não nos torna perfeitos, sacralizando o nosso pensar e agir, mas, conferindo-nos o senso de privilégio e responsabilidade, faz-nos  buscar cumprir com santo temor o nosso chamado com total integridade e dependência do Senhor.

O historiador católico Venard (1929-2014), comenta que a Academia “será daí em diante um viveiro de pastores para toda a Europa reformada”.[5]

De fato, ela contribuiu em grandes proporções para fazer de Genebra “um dos faróis do Ocidente” admite o católico Daniel-Rops (1901-1965).[6] 

A formação dada em Genebra era intelectual e espiritual. Os alunos participavam dos cultos das quartas-feiras bem como em todos os três cultos prestados a Deus no domingo.[7] Um escritor referiu-se a Genebra deste modo: “Deus fez de Genebra sua Belém, isto é, sua casa do pão”.[8]

Gaffarel em notícia bibliográfica à edição francesa da obra do missionário Jean de Léry (1534-1611), escreveu com clareza:

Da França, da Itália, da Inglaterra, da Espanha e até da Polônia acorreram inúmeros prosélitos. Genebra tornou-se a cidadela do protestantismo e foi nessa fonte ardente, de fé e eloquência que ardorosos missionários vieram buscar sua inspiração, a fim de espalhar em seguida, mundo afora, a doutrina e as ideias do mestre.[9]

          Sem dúvida, entre os Reformadores, Calvino foi  quem  mais amplamente compreendeu a abrangência das implicações do Evangelho nas diversas facetas da vida humana,[10] entendendo que “o Evangelho não é uma doutrina de língua, senão de vida. Não pode assimilar-se somente por meio da razão e da memória, senão que chega a compreender-se de forma total quando ele possui toda a alma, e penetra no mais íntimo recesso do coração”.[11]

          Por isso, ele exerceu poderosa influência sobre a Europa e Estados Unidos. Schaff chega dizer, sendo seguido por outros, que Calvino “de certo modo, pode ser considerado o pai da Nova Inglaterra e da república Americana”.[12]

          Aplicando esse princípio à doutrina da eleição, podemos dizer como Calvino: “Quando Deus seleciona dentre toda a raça humana um pequeno número ao qual abraça com seu paternal amor, esta é uma inestimável bênção que Ele derrama sobre eles”.[13]

Portanto, a doutrina da eleição quando estudada dentro de uma perspectiva bíblica,  com o coração desejoso de ouvir a voz de Deus, configura-se como um meio eficaz para o nosso fortalecimento na fé,[14] na certeza de que, apesar de nossas fraquezas e deficiências, Deus conforme sua sábia e misericórdia vontade nos elegeu antes dos tempos eternos e nos confirmará até o fim em santidade.

A nossa eleição repousa na promessa de Deus; e isto nos basta. Por isso, encontramos nesta doutrina “excelente fruto de consolação”.[15]

Quero concluir este capítulo com as estimulantes e confortadoras palavras de algumas Confissões sobre esta doutrina:

A todos os que sinceramente obedecem ao Evangelho, esta doutrina fornece motivo de louvor, reverência e admiração para com Deus, bem como de humildade, diligência e abundante consolação.[16]

Do sentimento interno e da certeza desta eleição tem os filhos de       Deus maior motivo para humilhar-se diante dele, adorar a profundidade da Sua misericórdia, purificar-se a si mesmos, e por sua parte amar-lhe ardentemente, que de modo tão eminente lhes amou primeiro.[17]

A piedosa meditação da Predestinação e da nossa eleição em Cristo, está cheia de um suavíssimo, doce e inexplicável conforto para os piedosos, e aos que sentem em si mesmo a operação do Espírito de Cristo.[18]

Cabe a nós, portanto, pregar o Evangelho com sinceridade, de forma inteligente, com amor e entusiasmo. Quanto aos resultados, estes pertencem a Deus; escapam da nossa esfera de ação.[19]

Já ia me esquecendo. Depois de tudo o que vimos,  por que será que Calvino foi e é tão acusado de não dar ênfase à missão e, quem o acusa, não é estranho associar esta “omissão” à sua compreensão da doutrina da predestinação?

É bastante razoável a explicação de Beeke a respeito da “concepção negativa do evangelismo de Calvino é consequência de:  

  • Estudo deficiente dos escritos de Calvino antes de chegarem às suas conclusões,
  • Falha na compreensão da visão de Calvino do evangelismo no seu próprio contexto histórico,
  • Incorporação de noções doutrinárias preconcebidas em seus estudos a respeito de Calvino e da sua teologia.[20]  

          Quanto a nós, exercitemos e colhamos, pois, os doces e suaves frutos deste ensino bíblico tão caro a nós Reformados. Que Deus nos ajude. Amém.

Maringá, 02 de agosto de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]“Foi dessa escola que saiu toda uma elite culta que difundiu a Reforma na Europa inteira”  (Eric Fuchs, Calvino: In: Monique Canto-Sperber, org. Dicionário de Ética e Filosofia Moral, São Leopoldo, RS.: Editora Unisinos, 2003, v. 1, p. 184b).

[2]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 19/1, (At 18.22), p. 198.

[3] Apud  Willemien Otten, Religion as exercitatio mentis: A case for theology as a Humanism discipline: In: Alasdair A. MacDonald, et. al. eds. Christian Humanism: Essays in Honour of Arjo Vanderjagt, Leiden: Brill Academic Pub., 2009, p. 60. Como curiosidade, cito que Voetius, como testemunho de sua erudição e piedade, foi o delegado mais jovem a participar do Sínodo de Dort. (Cf. Willem J. van Asselt, Scholasticism in the Time of High Orthodoxy (ca. 1620–1700). In: Willem J. van Asselt, ed., Introduction to Reformed Scholasticism, Grand Rapids, MI.: Reformation Heritage Books, 2001,  (Edição do Kindle). Posição  2867 de 5503.

[4] “Ora, Deus geralmente supre aqueles a quem imputa a dignidade de possuir esta honra a eles conferida com os dons indispensáveis para o exercício de seu ofício, a fim de que não sejam como ídolos sem vida”  (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 4.3), p, 96). “Sempre que os homens são chamados por Deus, os dons são necessariamente conectados com os ofícios. Pois Deus não veste homens com máscara ao designá-los apóstolos ou pastores, e, sim, os supre com dons, sem os quais não têm eles como desincumbir-se adequadamente de seu ofício” (João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.11), p. 119). Vejam-se também: João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 6.12), p. 173; João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 4, (IV.17). p. 225; João Calvino,  A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000,  p. 77; J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996,  (1Co 9.16), p. 276-277.

[5] Marc Venard, O Concílio Lateranense V e o Tridentino. In: Giuseppe Alberigo org.  História dos Concílios Ecumênicos, São Paulo: Paulus, 1995, p. 339.Do mesmo modo escreve Willemart: “Genebra torna-se o centro de formação dos pastores que serão enviados para todas as comunidades francesas e que permitirão a unidade da Igreja Evangélica Reformada”  (Philippe Willemart, A Idade Média e a Renascença na literatura francesa, São Paulo: Annablume, 2000, p. 42).

[6]Daniel-Rops,  A Igreja da Renascença e da Reforma: I. A Reforma protestante, São Paulo: Quadrante, 1996, p. 414.

[7]Cf. Charles W. Baird, A Liturgia Reformada: Ensaio histórico, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 29.

[8] Apud  Charles W. Baird,  A Liturgia Reformada: Ensaio histórico, p. 30.

[9] Paul Gaffarel, Notícias Biográficas. In: Jean de Léry,  Viagem à terra do Brasil,  2. ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes, (1951), p. 11.

[10] Vejam-se: André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 28; Wilson C. Ferreira, Calvino: Vida, Influência e Teologia, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1985, p. 188-189.

[11]John Calvin, Golden Booklet of the True Christian Life, 6. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1977, p. 17. Do mesmo modo, ver: João Calvino, As Pastorais, (Fm 6), p. 368.

[12] P. Schaff, The Creeds of Christendom, v.  1, p. 445.

[13] João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 2, (Sl 48.1), p. 352.

[14] Vd. J. Calvino, As Institutas,III.24.9.

[15] J. Calvino, As Institutas,III.24.4.

[16]Confissão de Westminster, III.6.

[17]Cânones de Dort, I.13.

[18]Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra, Capítulo XVII.

[19] Ver: J. Calvino, As Institutas,II.5.5,7; III.24.2,15.

[20]Joel R. Beeke, Calvin’s Evangelism, MJT 15 (2004) 67-86, p. 68.  (https://www.midamerica.edu/uploads/files/pdf/journal/15-beekeevangelism.pdf). (Consultado em 02.04.2021).

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