A Pessoa e Obra do Espírito Santo (139)

6.4. Um estudo de caso: A Academia de Genebra: A missão como vocação

Duas coisas obrigam à pregação da predestinação. A primeira é a humilhação do nosso orgulho e o reconhecimento da graça de Deus; e a segunda é a natureza da fé Cristã em si mesma. – Martinho Lutero (1483-1546).[1]
Quando Paulo pregava o Evangelho, ele sabia que a verdade da eleição divina não era nenhum empecilho para o amplo alcance de sua mensagem. Em vez disso, ele via a graça soberana como uma garantia do seu bom êxito. – Steven J. Lawson.[2]

                              Quando nos familiarizamos com os textos de Calvino e lemos algo sobre a sua vida e ministério, descobrimos um homem, ciente de suas lutas e pecados,[3] que busca sempre uma harmonia entre o que acredita ser a correta interpretação das Escrituras e a sua vida pessoal, valendo-se da Palavra, dos Sacramentos e da oração como meios fundamentais de crescimento em sua fé,[4] procurando viver conforme o modelo proposto por Deus em Cristo.[5]

          Ao mesmo tempo, transpira em seus textos um amor a Deus e à sua Igreja, dedicando-se com todo empenho a glorificar a Deus por meio de sua obediência sincera na concretização do que considera ser a vontade de Deus.

          Busca viver conforme escrevera a Farel quando, mesmo desejando permanecer em Estrasburgo,  atende ao pedido do  Conselho dos Duzentos,  e à persuasiva sugestão de Farel,  voltando para Genebra: “Mas quando eu me lembro que não pertenço a mim próprio, eu ofereço meu coração, apresentado como um sacrifício ao Senhor”.[6]  

    Dentro desse propósito, não mede esforços para levar adiante a sua vocação. Mesmo com o corpo fragilizado por tantas doenças, falta de recursos, carga extenuante de trabalho, calúnias, incompreensões e querelas intermináveis,[7] ele persegue com perseverança[8] o alvo colocado por Deus em seu coração. Em outras palavras: Ele não abandona sua vocação.[9]

    Para Calvino, cosmovisão é um compromisso de fé e prática. Por isso, o seu trabalho em Genebra consistiu na aplicação de sua fé às condições concretas de sua existência. A fé é chamada a se materializar nos desafios que se configuram diante de nós em nossa história de vida.

    Calvino que estudara  nos  Collège de la Marche,[10] Collège de Montaigu,[11] Universidade de Orléans e Universidade de Bourges, tendo como mestres alguns dos grandes professores de sua época,[12]conhecia bem a dureza (Montaigu), estrutura e rotina universitária.  Antes de ser um teólogo ele fora um humanista.[13] A sua filosofia de ensino reflete a sua apurada formação e maturidade intelectual[14] dentro de um referencial que partia das Escrituras tendo a soberania de Deus como princípio orientador e a glória de Deus como fim de todas as coisas, inclusive de nosso saber.[15]  

    Já na sua primeira permanência em Genebra (1536-1538) insistiu junto aos Conselhos para melhorar  as  próprias  condições do ensino, bem como os recursos das  escolas. Ele apresentou ao conselho municipal um projeto educacional (1536) gratuito que se destinava a todas as crianças – meninos e meninas[16] –, tendo um grande apoio público. Desta proposta surgiu o Collège de Rive.

    Temos aqui o surgimento da primeira escola primária, gratuita e obrigatória de toda a Europa:[17] “Popular, gratuita e obrigatória”.[18] No entanto o Collège de Rive encerrou suas atividades durante o período de Calvino em Estrasburgo (1538-1541), sendo reativado com a sua volta definitiva para Genebra (1541).[19]

Continuaremos no próximo post.

Maringá, 22 de março de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Martin Luther, De Servo Arbitrio.In:E. Gordon Rupp; Philip S. Watson, eds.Luther and Erasmus: Free Will and Salvation,Philadelphia: The Westminster Press, 1969, p. 137.

[2] Steven J. Lawson, Fundamentos da Graça: 1.400 a.C. -100 d.C: longa linha de vultos piedosos,  São José dos Campos, SP.: Editora Fiel,  2012, v. 1, p. 671

[3]No primeiro dia de 1553, período turbulento, Calvino escreve a sua carta dedicatória dos comentários do Evangelho de João aos síndicos de Genebra. A certa altura diz:

“Espontaneamente reconheço diante do mundo que mui longe estou de possuir a cuidadosa diligência e outras virtudes que a grandeza e a excelência do ofício requer de um bom pastor, e como continuamente lamento diante de Deus os numerosos pecados que obstruem meu progresso, assim me aventuro declarar que não estou destituído de honestidade e sinceridade na realização de meu dever” (João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  p. 23). Entende que “quanto mais eminentemente alguém se destaca em santidade, mais ele se sente destituído da perfeita justiça e mais que claramente percebe que em nada pode confiar senão unicamente na misericórdia de Deus” (João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 32.1), p. 42).

[4] “Invocar a Deus é o principal exercício  da fé e da esperança; e é assim que obtemos da parte de Deus todas as bênçãos” (João Calvino, Efésios,  São Paulo: Edições Paracletos, 1998, (Ef 6.18), p. 195). “Nada anima mais nossa esperança do que nos lembrarmos da benevolência pregressa de Deus, e, em meio às suas orações, amiúde encontramos Davi dedicando-se a reflexões desse gênero” (João Calvino, O Livro dos Salmos,  São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 61.3), p. 563). “A Palavra de Deus e os seus santos sacramentos têm mais importância e mais poder para preservar do que os vícios e erros de alguns para destruir” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.4), p. 104). “Essa Palavra é algo vivo e cheio de poder secreto, a qual não deixa nada no homem que não seja tocado” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 4.12), p. 110). “Ninguém jamais aprenderá o que Cristo é, ou o propósito de suas ações e sofrimentos, salvo pela orientação e ensino das Escrituras. Até onde, pois, cada um de nós deseja progredir no conhecimento de Cristo, teremos que meditar bastante e continuamente sobre a Escritura” (João Calvino, O evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 2.17),  p. 100). “…. só são dignos estudantes da lei aqueles que se achegam a ela com uma mente disposta e se deleitam com suas instruções, não considerando nada mais desejável e delicioso do que extrair dela o genuíno progresso. Desse amor pela lei procede a constante meditação nela….”.  (João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 1.2), p. 53).

[5] “A medida de todos nós é sermos aquilo que Deus pretende que sejamos” (João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  (Jo 3. 27), p. 142).

[6]John Calvin, “Letter to Farel,” John Calvin Collection,nº 73. (Edição brasileira: Cartas de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 49). Posteriormente, pregando em Genebra (26/02/1554), diria: “Em primeiro lugar temos de aprender a sujeitar nosso coração a ser obediente a Deus” (Juan Calvino, El Carácter de Job, Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 1), p. 32). “Quanto tem avançado aquele homem que há aprendido a não pertencer-se a si mesmo, nem a ser governado por sua própria razão, senão que submete a sua mente a Deus! (…) O serviço do Senhor não só implica uma autêntica obediência, senão também a vontade de pôr aparte seus desejos pecaminosos e submeter-se completamente à direção do Espírito Santo” (John Calvin, Golden Booklet of the True Christian Life, 6. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1977, p. 21).

[7] No dia 25 de dezembro de 1555, Calvino escreve ao pastor de Zurich, Johann Wolf (c. 1521-1572), amigo de Bullinger, em resposta à sua carta de 3 de dezembro. Nela retrata algumas de suas angústias:

“Creia-me, tive menos problemas com Serveto  e tenho agora com Westphal e seus companheiros, do que com aqueles que estão próximos de mim, cuja quantidade não pode ser estimada e cujas paixões são irreconciliáveis. Se pudesse escolher, seria melhor ser queimado pelos papistas do que ser eternamente praguejado pelos vizinhos. Eles não me dão um momento de descanso, embora possam ver claramente que estou entrando em colapso sob a carga do trabalho, perturbado por tristes acontecimentos intermináveis e por demandas importunas, Meu único conforto é que a morte logo me tirará desse serviço sobremodo difícil” (Calvino para o pastor em Zurich: Rudolf Schwarz, ed., Johannes Calvins Lebenswerk in seinen Briefen,  Neukirchener Verlag: Germany, 1962 v. 2, p. 819).

[8] “Por mais que o mundo nos odeie e nos persiga, não obstante devemos continuar firmes em nosso posto, para não nos privarmos do direito de reivindicar as promessas de Deus, ou para que elas não nos escapem; e por mais que e quanto mais somos molestados, devemos continuar sempre sólidos e inabaláveis na fé para a qual fomos chamados por Deus” (João Calvino,O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 11.1), p. 237).

[9] “Nada poderá encher-nos de mais coragem do que o reconhecimento de que fomos chamados por Deus. Pois desse fato podemos inferir que o nosso labor, que está sob a direção divina e no qual Deus nos estende sua mão, não ficará infrutífero. Portanto, pesaria sobre nós uma acusação muito grave caso rejeitássemos o chamado divino” (João Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 6.12), p. 173). “Além de tudo mais, se não tivermos a nossa vocação como uma regra permanente, não poderá haver clara consonância e correspondência entre as diversas partes da nossa vida. Assim, será muito bem ordenada e dirigida a vida de quem a conduzir tendo em vista esse propósito. Desse modo de entender e de agir nos resultará esta singular consolação: Não há obra, por mais humilde e humilhante que seja, que não brilhe diante de Deus e que não Lhe seja preciosa, contanto que a realizemos no serviço e cumprimento da nossa vocação” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006,  v. 4, (IV.17). p. 225).

[10] McGrath discute a possibilidade de esta interpretação tradicional ser equivocada. Em sua opinião Calvino não estudou no Collège de la Marche (Ver: Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 37-43).

[11] As regras do Collège de Montaigu eram bastante rígidas e a alimentação precária. É famosa a descrição de Erasmo a respeito desta Escola. Entre outros trabalhos, vejam-se: D. Erasmus, The Colloquies of Erasmus,  Chicago: The University of Chicago Press, 1965, p. 351-353; Roland H. Bainton, Erasmo da Cristandade,  Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1988),  p. 39ss.; Alister McGrath, A Vida de João Calvino, p. 44-45. Para um estudo detalhado de Montaigu, a obra clássica é: Marcel Godet, La Congrégation de Montaigu, Paris: Libraire Ancienne Honoré Champion, 1912, 220p.

[12] Ver: Hermisten M.P. Costa,  Raízes da Teologia Contemporânea, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 89-92

[13]Charles Borgeaud, Histoire l’Université de Genève, Genève: Georg & Cº, Libraires de L’Université, 1900, p. 21.

[14] Ford L. Battles, Interpreting John Calvin, Grand Rapids, Michigan: Baker Books, 1996, p. 47.

[15] “Não  busquemos as cousas que são nossas, mas aquelas que não somente sejam da vontade do Senhor, como também contribuam para promover-lhe a glória” (João Calvino, As Institutas, III.7.2). “Não há glória real senão em Deus” (João Calvino, As Pastorais, (1Tm 1.17), p. 46). Veja-se o verbete “Glória”, In: Hermisten M.P. Costa,  Calvino de A Z,  São Paulo: Vida, 2006, p. 138-140.

[16] Como curiosidade menciono que no Brasil, a primeira escola para moças foi aberta no Rio de Janeiro, capital no Império, em 1816. (Vejam-se:   Laurence Hallewell, O Livro no Brasil: sua história.  São  Paulo: T.A. Queiroz; EDUSP., 1985, p. 87; Luiz  Agassiz; Elizabeth C. Agassiz, Viagem ao Brasil: 1865-1866,  Belo Horizonte, MG.: Itatiaia; Editora da Universidade de São Paulo, 1975, p. 292-293).

[17] John T. McNeill, The History and Character of Calvinism, p. 135. Inter alia: Charles Borgeaud, Histoire l’Université de Genève, p. 16-18;Lorenzo Luzuriaga, História da Educação Pública, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959, p. 1, 5-6; Elmer L. Towns, John Calvin. In: Elmer L. Towns, ed.  A History of Religious Educators, Michigan: Baker Book House, 1985, p. 168-169; Philip Schaff, History of the Christian Church,v. 8, p. 804.

[18]Eugène Choisy,  L’ État Chrétien Calviniste: Genève au XVIme  siècle, Genève: Librairie Georg & Cia. 1909, p. 9.

[19]Ford L. Battles, Interpreting John Calvin, p. 61-62; John T. McNeill, The History and Character of Calvinism, p. 192; Robert W. Pazmiño, Temas Fundamentais da Educação Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 149.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *