A Pessoa e Obra do Espírito Santo (105)

                    6.2.1. Jesus Cristo: Duas naturezas em uma Pessoa

A mente piedosa não sonha para si um Deus qualquer; ao contrário, contempla somente o Deus único e verdadeiro, nem lhe atribui o que quer que à imaginação haja acudido, mas se contenta com tê-Lo tal qual Ele próprio Se manifesta e, com a máxima diligência, precavém-se sempre, para que não venha, mercê de ousada temeridade, a vaguear errática, trespassados os limites de Sua vontade” – João Calvino.[1]

                          Já tratarei em outros lugares sobre as duas naturezas de Cristo, afirmando que Jesus Cristo é plenamente homem e plenamente Deus.[2] Aqui quero limitar-me a tratar biblicamente a compreensão de que o Senhor Jesus, tendo duas naturezas, se constitui em uma só pessoa.

    Por natureza, entendemos os elementos essenciais para que uma coisa seja o que é (a concreta substância de uma espécie); desta forma, quando falamos em natureza humana, nos referimos a um corpo mortal e uma alma (= espírito) imortal, os quais a constituem.

    Menciono agora alguns erros concernentes às duas naturezas de Cristo:

                                                           A) Duas naturezas misturadas, formando uma terceira (Eutiquianismo).[3]

                                                           Paulo da graças a Deus pela genuína fé dos efésios depositada em Jesus Cristo (Ef 1.15). É necessário que entendamos que esta fé não significa simplesmente crer na humanidade de Cristo ou na sua divindade. Nem mesmo significa crer nas duas naturezas de Cristo como sendo misturadas uma com a outra, surgindo daí uma terceira pessoa, nem divina, nem humana (Eutiquianismo).[4] Observem que dentro desta perspectiva, Jesus não salvaria ninguém, já que Ele não seria verdadeiro homem nem verdadeiro Deus.

                                                           B) Duas naturezas e duas pessoas (Nestorianismo)

                                                           Também não significa crer que Jesus Cristo era constituído de duas naturezas e duas pessoas (Nestorianismo).[5] Deste modo, teríamos um “eu dividido” com uma relação frágil, apenas de afetividade, sem sabermos ao certo quem disse o quê e quem de fato nos salvaria.

    Antes de prosseguirmos em nossa análise, vejamos o que a Escritura nos ensina a respeito.

                                                 6.2.1.1. A visão dos escritores do Novo Testamento

                                                                                         Os escritores do Novo Testamento, em nenhum momento demonstraram preocupações com as implicações metafísicas (transcendentes) concernentes à Pessoa de Cristo. Quando eles falam de Cristo, fazem-no de modo suficientemente claro demonstrando que a  divindade e a humanidade de Cristo são verdades que se constituem em condição básica e essencial para a sua obra expiatória. Paulo diz que Jesus se fez semelhante na aparência da carne pecaminosa, porém, essencialmente sem pecado. Ele é paradoxalmente essencialmente humano, porém, sem pecado:

Porquanto o que fora impossível à lei, no que estava enferma pela carne, isso fez Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança (o(moi/wma) de carne pecaminosa e no tocante ao pecado; e, com efeito, condenou Deus, na carne, o pecado (Rm 8.3).

    Em favor do seu povo, Jesus Cristo, no seu estado de humilhação, se priva temporariamente da manifestação de sua glória.[6]  

    Paulo, em passagem magistral traça aspectos fundamentais da vida de Cristo, uma única pessoa, de eternidade à eternidade:

Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus,  6 pois ele, subsistindo em forma (morfh/,)[7] de Deus, não julgou como usurpação o ser igual  (i)/soj)[8] a Deus;  7 antes, a si mesmo se esvaziou (ke/now),[9] assumindo a forma (morfh/,)[10] de servo, tornando-se em semelhança (o(moi/wma)[11] de homens; e, reconhecido em figura humana, 8 a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. 9Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome,  10para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra,  11e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai. (Fp 2.5-11).[12]

    Aqui não há nenhum docetismo. Jesus Cristo não é apenas um ser celestial com aparência exterior humana, antes, é verdadeira e plenamente humano, porém, sem pecado.[13] (Vejam-se, também: Jo 1.18; Cl 1.13-22; Hb 1 e 2; 4.4-5.10; 7.1-10.18; 1Jo 1.1-2.2).

    Jesus Cristo encarnado é tão essencialmente Deus como essencialmente homem. Ele não pode deixar de ser Deus e, após a encarnação, não deixará de ser essencialmente homem. (Mt 26.64; Jo 3.13; At 7.56).[14]

    Deus não pode deixar de ser o Deus glorioso. Na encarnação Ele ocultou externamente a sua glória aos olhos dos homens.[15]

    Nosso Senhor privou-se também da alegria de estar diante do Pai, sem as limitações próprias da encarnação, com todos os agravantes resultantes do pecado humano: Fez-se pobre por amor a nós (2Co 8.9).[16]

    Todavia, já na metade do primeiro século da Era Cristã, surgiram alguns homens dispostos a negar a verdadeira humanidade de Cristo, contra os quais João escreveu veementemente:

E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai. (Jo 1.14). 

1Amados, não deis crédito a qualquer espírito; antes, provai os espíritos se procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora.  2 Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus;  3 e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que vem e, presentemente, já está no mundo. 4 Filhinhos, vós sois de Deus e tendes vencido os falsos profetas, porque maior é aquele que está em vós do que aquele que está no mundo.  5 Eles procedem do mundo; por essa razão, falam da parte do mundo, e o mundo os ouve.  6 Nós somos de Deus; aquele que conhece a Deus nos ouve; aquele que não é da parte de Deus não nos ouve. Nisto reconhecemos o espírito da verdade e o espírito do erro. (1Jo 4.1-6).

Maringá, 07 de fevereiro de 2021. Rev. Hermisten Maia Pereira d


[1] J. Calvino,  As Institutas,I.2.2.

[2] Vejam-se: Hermisten M.P. Costa, Eu Creio, São Paulo: Fiel, 2014; Hermisten M.P. Costa, Fé em Jesus Cristo: Verdadeiro Deus & Verdadeiro Homem, Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2015.

[3] Para um estudo mais completo desta questões, veja-se: Hermisten M.P. Costa, Eu Creio: No Pai, no Filho e no Espírito Santo, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2014.

[4] Nome derivado de Êutico (= Eutiques, Eutíquio) (c.378-454), arquimadrita de um mosteiro em Constantinopla, discípulo de Cirilo de Alexandria. A sua doutrina consiste numa reação ao Nestorianismo. Ele sustentou que a encarnação é o resultado da fusão do divino com o humano em Jesus, sendo a natureza humana absorvida pela divina ou, que desta fusão surgisse uma nova substância “híbrida” (Cf. Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 303); um “terceiro tipo de natureza” (Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 459).  Assim, sua posição envolvia uma pessoa e uma natureza. Ele foi o fundador do “Monofisismo”: Cristo tem uma única natureza; a divina revestida de carne humana. No Concílio de Calcedônia (23/05/451) o Eutiquianismo foi definitivamente condenado.

[5] Nome proveniente de Nestório (380-451), Bispo de Constantinopla (428-431). Tentando refutar o Eutiquianismo, Nestório ensinava  que Jesus Cristo era constituído de duas pessoas e duas naturezas.  Entendia que cada uma das duas naturezas de Jesus tinha a sua própria subsistência e personalidade; a união entre elas  não era ontológica, mas apenas moral, simpática e afetiva.

     Os seus ensinamentos foram rejeitados no Concílio de Éfeso (431) e de Calcedônia (451).

[6] “Não estou dizendo que Ele pôs de lado a Sua Deidade, porque Ele não fez isso. O que Ele pôs de lado foi a glória da Sua deidade. Ele não deixou de ser Deus, mas deixou de manifestar a glória de Deus” (D.M Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 1), p. 75). “A encarnação – e o entendimento de seu propósito, a crucificação – é o clímax da graça condescendente de Deus”­(William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, (Jo 1.14), p. 117). “A majestade de Deus não foi aniquilada, ainda que estivesse circunscrita pela carne. Ela ficou, de fato, oculta pela vil condição da carne, mas de modo a não impedir a manifestação de sua glória” (João Calvino, O evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.14),  p. 51).

[7]A palavra grega morfh/ (Mc 16.12; Fp 2,6,7)  não indica algo externo (forma)  em contraste com a essência interna. A aparência externa é a expressão visível, sensível, da sua natureza interna. Não há antítese. Portanto, a natureza essencial de Cristo era divina. A sua forma externa corresponde àquilo que Ele é em sua essência. (Vejam-se: G. Braumann, Forma: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 2, p. 378-281; W. Pöhlmann, Morfh/: In: Horst Balz; G. Schneider, eds. Exegetical Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 1999 (Reprinted), v. 2, p. 442-443;  J. Behm, Morfh/: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds.Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 4, p. 742-752 (especialmente); R.P. Martin, Filipenses: Introdução e Comentário,  São Paulo: Mundo Cristã; Vida Nova, 1985, p. 107-109 (O autor faz uma breve revisão das interpretações mais significativas); João Calvino, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2010, p. 407-408 (em especial); Bruce Ware, Cristo Jesus: Reflexões teológicas sobre a humanidade de Cristo, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2013, p. 25-30 (em especial).  Hendriksen, preciso como sempre, conclui: “O que Paulo está dizendo […] é que Cristo Jesus sempre foi (e continuará sempre sendo) Deus por natureza, a expressa imagem  da Deidade. O caráter específico  da Divindade, segundo se manifesta em todos os atributos divinos, foi e é a sua eternidade. Cf. Cl 1.15,17 (também Jo 1.1; 8.58; 17.24)” (W. Hendriksen, Exposição de Filipenses, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, p. 139).

[8]A palavra denota uma igualdade qualitativa e quantitativa de tamanho, numérica, de valor ou força, sendo aplicada a quantias iguais, extensões de tempo, partes, pedaços, etc.  (Veja-se: G. Stählin, i)/soj: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds.Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 3, p. 343-355). No NT. apresenta a ideia  de consistência/coerência (Mc 14.56,59); igual/igualar (Mt 20.12; Jo 5.18; Ap 21.16); outro tanto (Lc 6.34); mesmo (At 11.17). O texto de Filipenses aponta para a preexistência do verbo e a sua igualdade com o Pai. Ou seja: Ele é eternamente Deus.

[9] Vejam-se: Colin Brown, et. al. Vazio: In: Colin Brown, ed. ger. ONovo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 4, p. 690-692; A. Oepke, keno/j: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 3, p. 661-662 (especialmente);  F. Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 381-382.

[10] Da mesma forma, a natureza essencial de Cristo tornou-se humana, na forma de servo.

[11] *Rm 1.23; 5.14; 6.5; 8.3; Fp 2.7; Ap 9.7.  Uma palavra rara que significa “aquilo que é semelhante”, “cópia”. Para uma visão paralela destes textos, vejam-se: E. Beyreuther, et. al., Semelhante: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,  v. 4, p. 410-411 (em especial); J. Schneider, o(/moioj: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds.Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 5, p. 192-198; T. Holtz, o(moi/wsij: In: Horst Balz; G. Schneider, eds. Exegetical Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 1999 (Reprinted), v. 2, p. 512-513.

[12]Veja-se: B.B. Warfield, The Person of Christ. In: B.B. Warfield, The Works of Benjamin B. Warfield, Grand Rapids, MI.: Baker Book House, 2000 (Reprinted), v. 2. p. 176ss.

[13]Veja-se: J. Schneider, o(/moioj: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds.Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 5, p. 196.

[14]“Respondeu-lhe Jesus: Tu o disseste; entretanto, eu vos declaro que, desde agora, vereis o Filho do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu” (Mt 26.64). “Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do Homem que está no céu” (At 3.13). “E disse: Eis que vejo os céus abertos e o Filho do Homem, em pé à destra de Deus” (At 7.56).

[15]Veja-se: F. Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 383-384.

[16]“Pois conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos” (2Co 8.9).

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