A Pessoa e Obra do Espírito Santo (103)

Considerações pontuais

O Antigo e o Novo Testamentos estão fortemente ligados. Há unidade e coesão em toda a Bíblia. Não há contradição, a despeito de toda a disparidade, conforme já vimos. Todos os preceitos de Deus, foram-nos dados com o objetivo de que os cumpramos (Dt 29.29b).

    A Bíblia é a base do conhecimento que temos do Deus Trino. Por isso, Satanás tenta de todas as formas derrubar a confiança que temos, outorgada pelo Espírito de Deus, na autenticidade da Palavra de Deus, que é o nosso fundamento. Portanto, cuidado! Leiamos a Bíblia, rogando a direção iluminadora de Deus para que possamos entender o propósito de Deus para nós, revelado na sua Palavra

    Vimos que o Evangelho consiste na Mensagem harmoniosa do próprio Deus Triúno, tendo a Pessoa e Obra de Cristo como o tema principal e, a Glória de Deus como o propósito final.

    O Evangelho não é nosso, mas de Deus. Como diz Sproul (1939-2017):

O Evangelho não é algo inventado pelas percepções dos profetas ou pregadores, mas esse Evangelho vem do próprio Deus. Ele o possui. É sua propriedade. Portanto, quando proclamamos o Evangelho, estamos proclamando uma mensagem que não é nossa.[1]

    Todos nós que temos o Evangelho de Cristo registrado em nossos corações (Sl 119.11; 2Co 3.2,3), sentimos a necessidade de levar este Evangelho harmonioso a outros, a fim de que eles possam contemplar a Glória de Deus e, assim, participem conosco, pela graça de Deus, da mesma esperança que emana da Boa Nova de Cristo (Cl 1.3-5). Anunciemos então, com a nossa vida e com as nossas palavras, o “Evangelho da Glória de Deus” (1Tm 1.11), “O Evangelho da Glória de Cristo” (2Co 4.4).

    O Espírito não encerrou o seu Ministério Escriturístico na Inspiração e no registro da Bíblia. Cremos que Ele continuou guiando o seu povo à verdade (Jo 16.13). Essa condução primeira deu-nos o Novo Testamento por intermédio dos apóstolos. Para a igreja em geral o Espírito nos conduziu no reconhecimento do cânon no 3º Sínodo de Cartago (397), quando foi oficialmente reconhecido o Cânon Bíblico, como temos hoje e, também, o Espírito nos tem conduzido na preservação, compreensão e ensino da Escritura.

    Aliás, algo deve ser dito a respeito desse ponto. Como o leitor poderá ter percebido, ao falarmos do Cânon bíblico usamos sempre o termo “reconhecimento”, não “estabelecimento”, isto porque o Cânon não foi estabelecido por um decreto, ou por vontade de um Concílio independentemente de uma visão histórica; o que de fato aconteceu foi o reconhecimento oficial do que era uma prática comum, a aceitação dos 27 livros do Novo Testamento como Palavra de Deus[2] – com algumas exceções, diga-se de passagem, e, mesmo assim, apenas em determinadas regiões.

    Assim, considero Cartago como a oficialização – indiscutivelmente relevante – da prática eclesiástica, não como um marco iniciador de um processo surgido na mente de alguns homens. O cânon eclesiástico jamais poderia ter imposto. Ele dependeria, no mínimo, da aceitação majoritária da Igreja para que pudesse prevalecer, como de fato prevaleceu.

Nesse sentido, escreve Bruce (1910-1990):

Uma coisa precisa ser afirmada com toda ênfase: Os livros do Novo Testamento não se fizeram possuídos de autoridade para a Igreja pelo fato de virem a ser formalmente incluídos em uma lista canônica; pelo contrário, a Igreja incluiu-os no cânon porque já os havia por divinamente inspirados, reconhecendo-lhes o valor inato e a autoridade apostólica, direta ou indireta. Os primeiros concílios eclesiásticos a classificar os livros canônicos se realizaram ambos na África do Norte – em Hipona Régia, em 393, e em Cartago, em 397 – mas a ação desses concílios de modo algum representa a imposição de algo de novo às existentes comunidades cristãs, pelo contrário, simples codificação do que já era prática geral, corrente nessas comunidades.[3]

    Tenney (1904-1985) acrescenta:

Os concílios que discutiram o cânon só tiveram lugar no quarto século, e nessa altura o Novo Testamento já se tornara as Escrituras da Igreja.

O cânon, portanto, não é produto do critério arbitrário de qualquer pessoa, nem foi determinado por voto conciliar. Resultou do emprego dos vários escritos que provavam o seu mérito e a sua unidade pelo seu dinamismo interno. Alguns foram reconhecidos mais lentamente do que outros devido ao seu pouco tamanho, ou devido ao caráter remoto ou particular do seu destino ou à anonimidade de autoria, ou devido ainda à aparente falta de aplicabilidade a necessidades eclesiásticas imediatas. Nenhum destes fatores milita contra a inspiração de qualquer destes livros ou contra o seu direito de ter um luar na palavra autorizada de Deus.[4]

    De fato, a Igreja não criou os livros do cânon nem os conferiu autoridade; apenas deu testemunho de uma verdade há muito amplamente partilhada pelos cristãos.[5] Nesse sentido, o Espírito conduziu o seu povo à verdade![6]

    O Espírito continua hoje aplicando a verdade bíblica aos nossos corações. O conhecimento de Deus e da sua Palavra não visa satisfazer a nosso desejo descompromissado por informações, mas, sim, conduzir-nos a Ele em adoração e louvor: A Escritura é perfeita em seu propósito!

    Aliás, qual o valor e importância de Deus providencialmente ter assistido os escritores bíblicos no fiel registro de sua Palavra, preservado milhares de manuscritos e fragmentos para depois, deixar isso totalmente entregue ao arbítrio do homem ao longo da história? Seria uma perda de tempo enorme. Se assim ocorresse nós hoje já não mais teríamos a Escritura infalível como temos. Mas, o fato bíblico é que Deus em sua maravilhosa Providência conservou a sua Palavra e a conduz dentro de seu propósito eterno.

    A Bíblia foi-nos confiada a fim de que, mediante a iluminação do Espírito Santo, sejamos conduzidos a Jesus Cristo (Jo 5.39/Lc 24.27,44), sendo Ele mesmo Quem nos leva ao Pai (Jo 14.6-15; 1Tm 2.5; 1Pe 3.18) e nos dá vida abundante (Jo 10.10; Cl 3.4). Por isso, “ao estudarmos Deus, devemos procurar ser conduzidos a Ele. A revelação nos foi dada com esse propósito e devemos usá-la com essa finalidade”, orienta-nos Packer (1926-2020).[7]

    A Igreja prega o Evangelho, consciente de que Ele é o poder de Deus para a salvação do pecador (Rm 1.16). Por isso, recusar o Evangelho significa rejeitar o seu Autor, o próprio Deus quem nos fala (1Ts 4.8).

    Calvino, comentando Rm 1.16, diz que aqueles que se “retraem de ouvir a Palavra proclamada estão premeditadamente rejeitando o poder de Deus e repelindo de si a mão divina que pode libertá-los”.[8] No entanto, a compreensão salvadora das Escrituras só se torna possível mediante a iluminação do Espírito (Sl 119.18/Ef 1.17,18; 1Co 2.12,13). O conhecimento de Deus é pessoal[9] e ocorre pela graça (Mt 11.27; 16.16,17). “O Espírito fala ao nosso coração na medida em que nele faz morada”, conclui Spener (1635-1705).[10]

    Conforme salientamos, o conhecimento de Deus e da sua Palavra não visa satisfazer a nossa curiosidade pecaminosa – “O Ser essencial de Deus devemos adorar, não pesquisar com curiosidade”, adverte-nos Calvino (1509-1564)[11] – mas, sim, conduzir-nos a Ele. “O conhecimento de Deus não está posto em fria especulação, mas Lhe traz consigo o culto”,[12] que é o objetivo máximo de nossa existência, resume Calvino.[13]

Maringá, 03 de fevereiro de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] R.C. Sproul, O Pregador Mestre: In: R. Albert Mohler, Jr., et. al. Apascenta o meu rebanho: um apaixonado apelo em favor da pregação, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 95.

[2] Ver: J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: origem e desenvolvimento,São Paulo: Vida Nova, 1993,p. 44ss.

[3] F. F. Bruce, Merece Confiança o Novo Testamento?, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1965, p. 36. (Ver também: F. F. Bruce, The New Testament Documents, London: The Inter-Varsity Fellowship, 1966, p. 27). De modo semelhante diz Hale (1928?-2019): “Jamais se convocou um concílio geral para definir o cânon do Novo Testamento. Contudo, os concílios subsequentes, até Atanásio, confirmaram o que pareceu ter sido aceito” (B.D. Hale, Introdução ao Estudo do Novo Testamento, Rio de Janeiro: JUERP., 1983, p. 34). E. F. Harrison: “Às vezes tem-se dito que o cânon deriva tanto sua forma como sua autoridade dos concílios eclesiásticos, como se a igreja não houvesse reconhecido a Escritura antes da ação destes. Não é assim. O que os concílios fizeram foi certificar o cânon que era amplamente reconhecido na igreja. A ação conciliar não redigiu pela primeira vez uma regra de fé e prática, senão que deu um testemunho público e unido daquilo que a Igreja, desde muito tempo, havia reconhecido, usado e entesourado como seu guia autorizado. Isto se faz mui evidente a partir dos testemunhos patrísticos. (…) Só nos casos de livros em disputa poderia considerar-se como legislativa a ação conciliar, em tais casos só como porta-voz da maioria que havia aceitado estes livros como Escritura” (E. F. Harrison,  Introducción al Nuevo Testamento, Grand Rapids, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana, 1980, p. 104). (Ver também, Ibidem, p. 108; B. M. Metzger, The New Testament: its Background, Growth, and Content, 2. ed. (enlarged), Nashiville, Abingdon Press, 1992, p. 276; Oscar Cullmann,  A Formação do Novo Testamento, São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1979, p. 115; John R. W Stott,  Eu Creio na Pregação, São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 105).

[4] M. C. Tenney, O Novo Testamento: Sua Origem e Análise, 2. ed.  São Paulo: Vida Nova, 1972,  p. 438 e 440.

[5] “A igreja, porém, não fez com que o cânon ou mesmo um só livro fosse inspirado, mas apenas reconheceu e confessou aquilo que, há muito tempo, tinha sido estabelecido e tinha autoridade como um escrito canônico na igreja” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 428).

[6] Bruce (1910-1990) acentuou corretamente que: “A posição cristã histórica é que o Espírito Santo, que presidiu à formação de cada um dos livros, também lhes dirigiu a seleção e incorporação, continuando assim a dar cumprimento à promessa do Senhor de que ele guiaria os discípulos a toda verdade.” (F. F. Bruce, Merece Confiança o Novo Testamento?, p. 29). O autor demonstra que a aceitação deste princípio, que se discerne através da “percepção espiritual”, não exclui a pesquisa histórica, com o que eu concordo inteiramente.

[7]J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, p. 15.

[8]J. Calvino, Exposição de Romanos,(Rm 1.16), p. 58.

[9] “O conhecimento é absolutamente essencial; sem conhecimento não pode haver nenhum crescimento. Todavia o conhecimento, no sentido verdadeiramente cristão, nunca é meramente intelectual. É assim, e isso porque é o conhecimento de uma Pessoa. O propósito de toda doutrina, o valor de toda instrução, é levar-nos à Pessoa do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (D.M. Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, p. 165).

[10] Philipp J. Spener, Pia Desideria, São Paulo: Imprensa Metodista, 1985, p. 77.

[11]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 1, (I.14), p. 66.

[12]J. Calvino, As Institutas,I.12.1. “Até que sejamos iluminados do genuíno conhecimento do Deus único, haveremos de sempre servir aos ídolos, com cuja dissimulação podemos encobrir nossa falsa religião. O legítimo culto divino, portanto, deve ser precedido por um sólido conhecimento” (João Calvino, Gálatas,São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 4.8), p. 127).

[13] “Sabemos que somos postos sobre a terra para louvar a Deus com uma só mente e uma só boca, e que esse é o propósito de nossa vida” (João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 1, (Sl 6.5), p. 129). Veja-se: também, Catecismo de la Iglesia de Ginebra,Perg. 1: In: Catecismos de la Iglesia Reformada,Buenos Aires: La Aurora, 1962.

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