Introdução ao Estudo dos Credos e Confissões (21) – A Ortodoxia Protestante (2)

Este artigo é continuação do: Introdução ao Estudo dos Credos e Confissões (20) – A Ortodoxia Protestante (1)

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2. Conceituando

 

Teodoro de Beza

O período entre a Reforma e o Iluminismo ou, mais precisamente, o século XVII, é conhecido na História da teologia protestante, como “Escolasticismo[1] Protestante”, “Ortodoxia Protestante” ou “Confessionalista”, que se caracterizou por uma preocupação profunda e sistemática pelo rigor doutrinário, elaborando com riqueza de detalhes os posicionamentos teológicos da igreja, conforme a compreensão da amplitude da revelação bíblica. Podemos dizer que este período consistiu na sistematização das doutrinas da Reforma. Normalmente a Ortodoxia Luterana é colocada a partir do Livro da Concórdia (1580),[2] livro que contém todos os símbolos aceitos pela Igreja Luterana; e a Ortodoxia Reformada, como tendo sido arquitetada a partir dos escritos de Teodoro de Beza (1519-1605), e H. Zanchi (1516-1590).[3]

 

A denominação “Escolasticismo”, aplicada a este período da teologia protestante, significa, na visão de Hugh R. Mackintosh (1870-1936),

 

Uma disposição de ânimo intelectual que pode invadir qualquer tema em qualquer época. Na religião, é o espírito da lei que se impõe ao espírito do Evangelho. O resultado foi o estancamento teológico, especialmente nos campos da exegese bíblica e da história eclesiástica.[4]

 

No mesmo diapasão, escreveu George E. Ladd (1911-1984):

 

Os resultados obtidos pelos estudos históricos da Bíblia, realizados pelos reformadores, logo se perderam no período imediatamente após a Reforma, e a Bíblia foi mais uma vez utilizada sem uma perspectiva crítica e histórica, para servir de apoio à doutrina ortodoxa. A Bíblia foi considerada não somente como um livro isento de erros e contradições, mas também como sem desenvolvimento ou progresso. A Bíblia, no seu todo, foi estudada como possuindo um nível único de valor teológico. A História foi completamente absorvida pelo dogma e a filologia tornou-se um ramo da dogmática.[5]

 

Niebuhr (1892-1971) chega a dizer que esta ortodoxia era “estéril”, na qual a experiência da “justificação pela fé” degenerou-se em “justiça de crença”.[6]

 

Creio que as colocações feitas por Mackintosh, Niebuhr e Ladd são extremamente negativas em relação ao “Escolasticismo Protestante”, embora também saiba que eles não partilham sozinhos deste conceito, seguindo de certa forma, um clichê repetido tantas vezes um tanto irresponsavelmente.

 

Certamente a ênfase acentuada e por vezes isolada na teologia, trouxe algumas anomalias que geraram uma atitude perniciosa, que consiste em separar a doutrina da piedade individual ou, em confundir a fé em Cristo com o mero assentimento intelectual a determinadas doutrinas tidas como fundamentais à fé Cristã.

 

Todavia, se isso ocorreu, não foi porque os teólogos dessa época ensinaram tal prática, mas sim devido a um desvirtuamento da ênfase apresentada. Não podemos simplesmente identificar a ênfase num ponto, como se significasse a exclusão dos demais. Em outras palavras, a ênfase na fidelidade doutrinária não equivale a um desmerecimento da piedade cristã.[7] Por outro lado, devemos estar atentos ao fato de que a visão preconceituosa desse período, tem feito com que não consigamos enxergar as contribuições positivas da teologia sistematizada nessa época, das quais somos herdeiros diretos ou indiretos. W. Robert Godfrey, observa acertadamente, que “o desenvolvimento da teologia escolástica não pode ser caricaturado como um exercício acadêmico, árido e irrelevante, em conflito com a vida e a piedade da Igreja”.[8]

 

Acredito que um exame mais detido deste período, revelará a sua importância como elemento fundamental para que a Reforma pudesse ter sobrevivido e finalmente triunfado teologicamente. E mais, poderemos descobrir os clássicos de Teologia Sistemática, passando por Charles e A. A. Hodge, Strong, Shedd, Berkhof, Barth, Brunner e Tillich.

 

Paul Tillich (1886-1965), mesmo não sendo um teólogo “ortodoxo”, enfatiza em diferentes lugares, a importância do Escolasticismo Protestante:

 

A ortodoxia clássica relaciona-se com uma grande teologia. Poderíamos chamá-la de escolástica protestante, com todos os refinamentos e métodos que a palavra ‘escolástica’ inclui. Assim, quando eu falo de ortodoxia, refiro-me à maneira como a Reforma estabeleceu-se, enquanto forma eclesiástica de vida e pensamento, depois que o movimento dinâmico da Reforma terminou. É a sistematização e a consolidação das ideias da Reforma, desenvolvidas em contraste com a Contra-Reforma.[9]

A ortodoxia protestante era construtiva (…) os teólogos ortodoxos trabalharam objetiva e construtivamente, procurando apresentar a doutrina pura e completa de Deus, do homem e do mundo (…). Os teólogos ortodoxos não eram leigos em teologia, ignorantes do que queriam dizer os conceitos que empregavam na interpretação bíblica. Sabiam muito bem o seu significado ao longo de quinze séculos de história da igreja já passados. Conheciam também a história da filosofia e a teologia da Reforma. O fato de permanecerem na tradição dos reformadores não os impediu de conhecer profundamente a teologia escolástica, de discuti-la e refutá-la, e até mesmo de aceitá-la quando era o caso.

Tudo isso faz da ortodoxia clássica um dos grandes eventos da história do pensamento cristão.[10]

 

Da mesma forma, analisa Bernhard Lohse (1928-1997), quando escreve: “Naquela época levou-se extremamente a sério a questão da verdade. Por essa razão deve-se evitar um julgamento precipitado da época da ortodoxia”.[11]

 

No próximo post vamos tratar sobre os elementos que contribuíram para a Ortodoxia Protestante.

 

 

São Paulo,13 de dezembro de 2018.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


 

[1] Como sabemos, a palavra “Escolasticismo” fora empregada de forma depreciativa pelos humanistas para designar a filosofia medieval. A palavra “escolástica”, provém do grego “sxolastiko/j” (desocupado, vagaroso, dedicar todo o tempo ao aprendizado) que é derivado de “sxola/zw” (estar ocioso, consagrar o seu descanso a, ser discípulo, etc.) e “sxolh/” (descanso, repouso, estudo). 

“Escolástica” como “filosofia cristã da Idade Média” (Escolástica: In: N. Abbagnano, Dicionário de Filosofia, 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 326a) era empregada na Idade Média para se referir à “filosofia da escola”, a qual se esmera por sua precisão. O seu maior representante é indiscutivelmente S. Tomás de Aquino (1225-1274). O pensamento escolástico, com suas variáveis, permaneceu do século IX até o XV-XVI. O termo “Escolástica”, é usado por derivação para “toda filosofia que assuma a tarefa de ilustrar e defender racionalmente uma determinada tradição ou revelação religiosa” (Escolástica: In: N. Abbagnano, Dicionário de Filosofia, p. 326b). Por outro lado, a palavra as vezes é empregada de forma pejorativa. No caso da designação “Escolasticismo Protestante”, creio ser este o espírito. No entanto, devemos estar sempre atentos ao sentido real de precisão, coerência e consistência que o adjetivo envolve. (Veja-se: John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, São Paulo: Pendão Real, 1997, p. 172-173). Lalande comenta: “No sentido pejorativo, diz-se quer daquilo que apresenta um caráter exagerado de formalismo (excesso de divisões, de distinções, de raciocínio in verbis); quer do que manifesta um ar de espírito escolar, uma tendência para se fechar em teses ou questões tradicionais formuladas de uma vez por todas, em vez de se renovar pelo contato imediato da observação e da vida” (Escolástica: André Lalande, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 318). (Veja-se: Alister E. McGrath, Reformation Thought: An Introduction, 2. ed. Cambridge, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1993, p. 67ss).

[2]Cf. Bengt Hägglund, História da Teologia, Porto Alegre, RS.: Casa Publicadora Concórdia, 1973, p. 259, 263; Arthur C. Piepkorv, Orthodoxy: In: Encyclopaedia Britannica, 1973, v. 16, p. 1126a; Carl E. Braaten, Prolegômenos à dogmática cristã: In: Carl E. Braaten; Robert W. Jenson, eds. Dogmática Cristã, São Leopoldo, RS.: Sinodal, v. 1, 1990, p. 57. Veja-se: Jan Rohls, Reformed Confessions: theology from Zurich to Barmen, Louisville, Kentucky: Westminster John Knox Press, 1998, p. 9.

[3]Cf. Arthur C. Piepkorv, Orthodoxy: In: EB., 1973, v. 16, p. 1126b. Leith, McGrath e Piepkorv tomam como ponto de partida para a definição deste período o ano da morte de Calvino (1564) (Vejam-se: John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, São Paulo: Pendão Real, 1997, p. 171; Alister E. McGrath, Christian Theology: An Introduction, p. 69; Arthur C. Piepkorv, Orthodoxy: In: EB., 1973, XVI, p. 1126b). McGrath acentua que o período entre 1559-1622 é caracterizado pela ênfase doutrinária. (Alister E. McGrath, Christian Theology: An Introduction, p. 70). Estes pequenos contrastes, servem para ilustrar a observação do luterano Braaten, de que “a ortodoxia do cristianismo reformado estava definida com muito menos clareza do que a luterana” (Carl E. Braaten, Prolegômenos à dogmática cristã: In: Dogmática Cristã, v. 1, p. 57). Segundo Muller, a Ortodoxia pode ser dividida em três período: Ortodoxia Primitiva: (c. 1565-1640); Alta Ortodoxia: (c. 1640-1700) e Ortodoxia Tardia: (c. 1700-1790). (Richard A. Muller, Post-Reformation Reformed Dogmatics, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1987, v. 1, p. 14ss; 42-52).

[4]Hugh R. Mackintosh, Corrientes Teológicas Contemporáneas: De Schleiermacher a Barth, Buenos Aires: Methopress Editorial, 1964, p. 20. Conforme Muller, essa designação descreve “o lado técnico e acadêmico do processo de institucionalização da doutrina Protestante” (Richard A. Muller, Post-Reformation Reformed Dogmatics, v. 1, p. 17).

[5]George E. Ladd, Teologia do Novo Testamento, Rio de Janeiro: JUERP., 1985, p. 14.

[6] Reinhold Niebuhr, The Nature and Destiny of Man, New York: Charles Scribner’s Sons, 1964, v. 2, p. 188.

[7] Sobre a questão da Teologia e Piedade, Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Teologia Sistemática: Prolegômena, São Paulo, 2008.

[8]W. Robert Godfrey, Calvino e o Calvinismo nos Países Baixos: In: W. Stanford Reid, ed. Calvino e Sua Influência no Mundo Ocidental, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 133.

[9]Paul Tillich, História do Pensamento Cristão, São Paulo: ASTE., 1988, p. 251. Do mesmo modo, entende John H. Leith. (Veja-se: Creeds of the Churches, New York: Anchor Books, 1963, v. 1, p. 308-309).

[10]Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, São Paulo: ASTE., 1986, p. 36.

[11]Bernhard Lohse, A Fé Cristã Através dos Tempos, 2. ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1981, p. 231.

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