A lenda do Corpus Christi e o significado real da Ceia do Senhor (1)

A celebração da festa de Corpus Christi (Corpo de Cristo, ou Corpo de Deus), é originária do século XIII na Bélgica, estando entremeada de lendas e superstições. Ao que parece a sua criação visava, entre outras coisas, dar maior destaque na litúrgica da “quinta-feira santa” à Ceia ao invés de enfatizar, como estava acontecendo, à traição de Judas.[1] A sua alusão histórica é à quinta feira anterior à autoentrega de Jesus Cristo na cruz, quando nosso Senhor instituiu a Ceia com seus discípulos, que também é conhecida como Santa Ceia, Mesa do Senhor e Eucaristia.

 

A Santa Ceia foi instituída por Cristo, o Senhor e Cabeça da Igreja, para o nosso benefício espiritual, visando ao nosso alimento, fortalecimento e crescimento. Verifica-se, desde o início da igreja do Novo Testamento que a Ceia do Senhor é uma das mais importantes instituições da igreja cristã. Paulo recrimina os crentes de Corinto, justamente porque eles não estavam discernindo este ponto fundamental em suas reuniões: “Nisto, porém, que vos prescrevo, não vos louvo, porquanto vos ajuntais, não para melhor; e, sim, para pior” (1Co 11.17).

 

Os crentes de Corinto faziam da Santa Ceia uma ceia comum e ainda mais, da pior espécie, “transformando a igreja em um piquenique para glutonaria”,[2] visto que servia para ostentação dos mais ricos, dando ocasião, de um lado, à vaidade, glutonaria e à embriaguez e, de outro, à humilhação e fome (1Co 11.21,22),[3] Ambas as consequências, eram o resultado do não discernimento do significado da Ceia do Senhor.

 

Analisemos alguns aspectos que devem reger a participação do fiel na Santa Ceia.

1. Participação na Ceia

 

Na narrativa da instituição da Ceia, lemos:

 

Enquanto comiam, tomou Jesus um pão e, abençoando-o, o partiu e o deu aos discípulos, dizendo: Tomai, comei; isto é o meu corpo. A seguir tomou um cálice e, tendo dado graças, o deu aos discípulos, dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados. E digo-vos que, desta hora em diante, não beberei deste fruto da videira, até aquele dia em que o hei de beber, novo, convosco no reino de meu Pai (Mt 26.26-29).

 

O Apóstolo Paulo relatando este acontecimento, escreve:

 

Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto é meu corpo que é dado por vós; fazei isto em memória de mim. Por semelhante modo, depois de haver ceado,      tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de mim (1Co 11.23-25).

 

Aqui temos também a indicação não somente de que a Ceia fazia parte da vida da Igreja, mas também, de que ela deveria continuar a ser praticada. O tempo verbal de “fazei isto” (1Co 11.24), indica uma atitude contínua: “Fazei isso e permanecei fazendo sempre…”.

2. “Recordação amorosa”

 

O sacrifício de Cristo, o Deus encarnado, em favor do Seu povo, é o marco decisivo de nossa salvação. Considerando isso, a participação na Ceia do Senhor exercita a nossa “memória amorosa”, fazendo-nos lembrar, com gratidão, do sacrifício remidor de Cristo. “Fazei isto em memória de mim” (1Co 11.24). A Ceia traz sempre à memória a nossa condição de pecadores totalmente impossibilitados de alcançar a salvação. Se não fosse a obra graciosa, voluntária e sacrifical de Cristo em nosso favor, jamais seríamos salvos (Gl 1.4; Ef 5.2).[4]

 

Ao mesmo tempo, a Ceia traz à tona o novo pacto feito por Deus com o Seu povo, que consiste na sua restauração. Aqui rememoramos:

 

a) O contexto da instituição da Ceia estava diretamente relacionado à Páscoa (Ex 12.1-13; Lc 22.7-22; 1Co 5.7). Jesus Cristo como Cordeiro sem defeito, por meio do seu sangue marcou para sempre o Seu povo, o reconciliando com Deus, o livrando da ira presente e futura.

Enquanto que a Páscoa nos falava de um sacrifício repetido como fato histórico, ela adquire na Ceia o sentido não mais de sacrifício, mas de fato consumado pelo sacrifício perfeito de Cristo.

 

b) A aliança de Deus feita com Israel, registrada no capítulo 24 do Livro de Êxodo.

 

     “Então tomou Moisés aquele sangue e o aspergiu sobre o povo, e disse: Eis aqui o sangue da aliança que o Senhor fez convosco a respeito de todas estas palavras” (Ex 24.8).

 

c) Bem como a aliança profetizada por Jeremias, que apontava para o futuro não muito distante:

 

Eis aí vem dias, diz o Senhor, e firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá (…). Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor. Na mente lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhes inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo (Jr 31.31,33).

 

d) O novo pacto firmado por Deus com a Sua Igreja também envolve o derramamento de sangue – já que “sem derramamento de sangue não há remissão” (Hb 9.22) –, só que agora, o sangue derramado não é de animais, mais o sangue precioso de Cristo, o “nosso Cordeiro pascal” (1Co 5.7 – Jo 19.33,36), que se entregou em favor de muitos. Portanto, “O novo concerto foi ratificado por meio de Seu sangue”.[5]

 

Jesus, conforme a narrativa de Mateus, diz: “… Isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados” (Mt 26.28).

 

Participar da Ceia significa reavivar em nós a confiança no Pacto de Deus conosco firmado no passado, que nos garante a certeza da vida eterna.

 

E mais: o Senhor se despediu de sua igreja fisicamente (Mt 26.11; Jo 14.2,4; 16.7,28; 17.24; At 1.1.9-11; 7.56; Ef 4.10; Cl 3.1; Hb 7.26).[6] Da forma como Ele esteve com os Seus discípulos, fisicamente, Ele não está mais com a igreja nesta dispensação. Agora, fisicamente, com seu corpo glorificado Ele permanece no céu, de onde O aguardamos (At 1.11; Fp 3.20-21; 1Ts 1.10; 4.16).[7] Porém, Ele está conosco, não menos intensamente, por meio do Seu Espírito.[8] (Rm 8.9; Gl 4.6/Fp 1.19/At 16.7).[9] O Senhor Jesus não nos deixou órfãos. Ele, Ele mesmo está conosco aqui e agora, e para sempre (Jo 14.16-18/At 9.31).[10]

 

Ao participarmos da Ceia, enquanto aguardamos o Seu retorno, recordamos o feito do Deus encarnado a favor de Seu povo, realizado uma vez por todas e para sempre. Na cruz Ele mesmo declarou ter consumado a sua obra (Jo 19.30).

 

Maringá, 19 de junho de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

 


[1] Cf. Maurice Carrez; Pierre-Marie Gy, Eucaristia: In: Jean-Yves Lacoste, dir., Dicionário Crítico de Teologia, São Paulo: Paulinas; Loyola, 2004, p. 682.

[2] R.C. Sproul, O que é a Ceia do Senhor?  São José dos Campos, SP.: Fiel, 2014, p. 64.

[3]21 Porque, ao comerdes, cada um toma, antecipadamente, a sua própria ceia; e há quem tenha fome, ao passo que há também quem se embriague. 22 Não tendes, porventura, casas onde comer e beber? Ou menosprezais a igreja de Deus e envergonhais os que nada têm? Que vos direi? Louvar-vos-ei? Nisto, certamente, não vos louvo” (1Co 11.21-22).

[4]“O qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade de nosso Deus e Pai” (Gl 1.4). “Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus, em aroma suave” (Ef 5.2).

[5]C. Hodge, O Caminho da Vida, New York: Sociedade Americana de Tractados, (s.d.), p. 229. Calvino comentando 1Co 11.25, diz que a aliança do Seu corpo “foi uma vez por todas ratificada pelo sacrifício de seu corpo” (João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1997, p. 358).

[6]“Porque os pobres, sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes” (Mt 26.11). 2 Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou preparar-vos lugar. (…) 4 E vós sabeis o caminho para onde eu vou” (Jo 14.2,4). “Mas eu vos digo a verdade: convém-vos que eu vá, porque, se eu não for, o Consolador não virá para vós outros; se, porém, eu for, eu vo-lo enviarei” (Jo 16.7). “Vim do Pai e entrei no mundo; todavia, deixo o mundo e vou para o Pai” (Jo 16.28).“Pai, a minha vontade é que onde eu estou, estejam também comigo os que me deste, para que vejam a minha glória que me conferiste, porque me amaste antes da fundação do mundo” (Jo 17.24). 9 Ditas estas palavras, foi Jesus elevado às alturas, à vista deles, e uma nuvem o encobriu dos seus olhos. 10 E, estando eles com os olhos fitos no céu, enquanto Jesus subia, eis que dois varões vestidos de branco se puseram ao lado deles 11 e lhes disseram: Varões galileus, por que estais olhando para as alturas? Esse Jesus que dentre vós foi assunto ao céu virá do modo como o vistes subir” (At 1.1.9-11). “E disse: Eis que vejo os céus abertos e o Filho do Homem, em pé à destra de Deus” (At 7.56). “Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas” (Ef 4.10). “Portanto, se fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus” (Cl 3.1). “Com efeito, nos convinha um sumo sacerdote como este, santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores e feito mais alto do que os céus” (Hb 7.26).

[7]E lhes disseram: Varões galileus, por que estais olhando para as alturas? Esse Jesus que dentre vós foi assunto ao céu virá do modo como o vistes subir” (At 1.11). 20 Pois a nossa pátria está nos céus, de onde também aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, 21 o qual transformará o nosso corpo de humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória, segundo a eficácia do poder que ele tem de até subordinar a si todas as coisas” (Fp 3.20-21). “E para aguardardes dos céus o seu Filho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos, Jesus, que nos livra da ira vindoura” (1Ts 1.10). “Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro” (1Ts 4.16).

[8] Ferguson comenta: “Tão plena é a união entre Jesus Cristo e o Parácleto, que a vinda deste é a vinda do próprio Jesus Cristo no Espírito” (Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, São Paulo: Editora Os Puritanos, 2000, p. 74).

[9]“Vós porém, não estais na carne, mas no Espírito, se de fato o Espírito de Deus habita em vós. E se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele” (Rm 8.9). “E, porque vós sois filhos, enviou Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai!” (Gl 4.6).

[10]16 E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco,  17 o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não no vê, nem o conhece; vós o conheceis, porque ele habita convosco e estará em vós.  18 Não vos deixarei órfãos, voltarei para vós outros” (Jo 14.16-18).

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